quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A PAZ

 

 


(...) ”Paz, em hebraico, é Shalom, e, literalmente, Shalom quer dizer: “estar inteiro”, “estar em repouso”… 
É então conveniente que perguntemos: o que nos impede de estarmos inteiros? 
O que nos impede de experimentarmos o repouso, isto é, de estarmos em paz?
As respostas são múltiplas; destaco apenas as que me parecem essenciais;
- O que nos impede de estarmos inteiros, de estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o medo.

- O que nos permite estarmos inteiros, estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o amor.
O contrário do amor, e portanto da realização do que somos, não é fundamentalmente o ódio, e sim o medo.
Medo de quem? 
Medo de quê?
Medo de amar, melhor dizendo, de se perder, pois amar antes de se encontrar é perder-se.
Certamente, existe toda sorte de medo: do desconhecido, do sofrimento, do abandono, da morte… 
Todos esses medos podem resumir-se num só: medo de ser “nada”.
Este medo nos leva a esforços inimagináveis, para provarmos a nós mesmos e aos outros que somos alguma coisa e que “vale a pena” sermos amados, que o merecemos…
Ser amado seria, portanto, um direito do homem?
Infelizmente, este é um segredo muito bem guardado: aquele que procura ou solicita o amor jamais o encontrará… 
Só o encontramos no momento em que o damos… 
 
Unicamente quem ama, quem se torna amável e é capaz desse dom “gracioso” recebe o amor gratuitamente.
O Amor jamais se manifesta àquele que o pede, mas se revela sem cessar a quem o doa. 
Aquele que compreendeu e viveu isto sente-se em paz. E também inteiro, porque só o amor nos realiza (e é o cumprimento da lei).
O medo nos “castra”, torna-nos enfermos e impede a livre circulação da vida em todos os nossos membros. 
E no Amor não há “membros impuros”: “Tudo é puro para aquele que é puro”; é o Amor que purifica.
Amar com todo o seu ser, este é o mandamento (mitzvah), ou, mais exatamente, o “exercício” que nos é proposto: “Amarás com todo o teu coração, com todo o teu espírito, com todas as tuas forças”; isto traz também uma esperança.

Um dia amarei inteiramente, não somente com o meu corpo, minha cabeça ou meu coração, mas “inteiramente”; um dia, se almejo isto sem perder a esperança, estarei em paz.
Pois é suficiente desejar amar, querer amar, mesmo que ainda não seja amar… 
Bem sabemos que o inferno não está nos outros; o inferno é não amar, é não se amar inteiramente, até em nossa dificuldade e algumas vezes em nossa incapacidade de amar…
Nesse caso, talvez seja bastante não mais querer, não mais ter medo deste medo sutil, menos grosseiro, que é o medo de não ser amado, o medo de não amar… 
Aquele que perdeu o medo de ser “nada” não tem mais medo de tudo; paradoxalmente, é o medo de ser nada que nos impede de ser tudo. 
 
Se aceitássemos, por um instante, este “nada” que somos, este “nada a mais e nada a menos” do que somos, então, nesse mesmo momento, não haveria mais obstáculos à revelação e ao desdobramento do Ser que ama, em nós e através de nós.
Se, supostamente, ser amado é um direito do homem, ser capaz de doar é uma realização, uma graça divina concedida ao homem; a alegria de participar da Dádiva e da Vida do Ser que faz “girar a Terra, o coração humano e as demais estrelas”, generosamente…

Porém, não fosse pelo fato de nos “sentirmos mal”, como seria possível aceitarmos “ser nada” quando nos sentimos ser alguma coisa?
O termo “nada” pode parecer negativo; talvez fosse preciso dizer simplesmente “ser”, sem acrescentar qualquer palavra, para podermos pressentir que o que se soma ao “ser” é algo de “mental” e compreendermos melhor a palavra do Cristo, precedida pela de Buda (seis séculos antes): “O que é, é, o que não é, não é”. 
Tudo o que é dito a mais vem do mental ou do “mau”, ou ainda, em algumas traduções, do “mentiroso”.
Sentir-se em paz é estar num corpo relaxado, com o coração livre e a mente serena. 
E conhecendo melhor, hoje, as funções coordenadoras do cérebro, é sem dúvida pelo mental que devemos começar. 
Ser nada a mais (e nada a menos) do que somos – estar em paz – pressupõe uma mente pacificada, em repouso, e é o segundo sentido da palavra shalom.

Por que não estamos em repouso?
Não somente há o medo de ser “nada” (ser mais ou ser menos do que somos), mas existem as lembranças, com as quais nos identificamos e que tomamos por nosso verdadeiro ser. 
O caminho para a paz é aquele que nos faz passar das nossas identidades provisórias, irrisórias, transitórias,para a nossa identidade essencial (eu sou o que eu sou).

(...) Em resumo, o principal obstáculo à paz, o maior dos demônios é a nossa própria mente, este reservatório de emoções passadas, que se derrama sem parar sobre o presente; este “pacote de memórias” que denominamos ego, ou eu. 
Quem sofre ou é infeliz é sempre o eu e nossa identificação com o que não somos realmente.
Que só o presente existe é um segredo bem guardado; o que era, não é mais; o que será, ainda não é; se vivermos eternamente em nossos arrependimentos e projetos, teremos que sofrer e passaremos ao largo do “segredo”… “Ora ao teu Pai que está aí, dentro do segredo”, na presença do que é presente. 
São palavras do Evangelho e também palavras de cura…
A morte não existe ainda, ela não é. 
 
Só permanece este “Eu Sou”, que existe desde sempre e para sempre.
 Não podemos ir para outro lugar, senão onde estamos; e onde nos encontramos aqui já estamos. 
Por que procurar, em outra parte, a vida e a paz que nós somos, se a paz é nossa verdadeira natureza, não está por fazer?
  Trata-se, primeiramente, de conferir menos importância àquilo que nos “impede” de estar em paz; depois, não lhe dar importância alguma, se quisermos; e isto significa aderir, instante após instante, ao que é, com um espírito silencioso, uma mente serena, ou melhor, não identificados com as memórias e com as emoções que essas memórias provocam.

Lembrar-se de que nossa verdadeira natureza está em paz é uma forma universal de oração. 
Essa rememoração de nosso ser verdadeiro encontra-se, efetivamente, na base das práticas de meditação de várias culturas ou religiões (dhikr – prática islâmica; japa – modalidade de ioga; hesicasmo – seita antiga de místicos cristãos orientais, etc.).
Temos medo de quê? 
De perdermos a cabeça, perdermos a alma, de não sermos o que nossas memórias nos dizem que somos, não sermos coisa alguma do que pensamos ser?
 
  Perdem-se as ilusões, os pensamentos, e fica somente o medo de morrer. 
Se eu paro de me identificar com o que deve morrer, permaneço já naquilo que sou desde sempre.
Não pode haver outro artesão da paz que não seja aquele cujo corpo está relaxado, que tem o coração livre e a mente pacificada. 
 
Mesmo o nosso desejo de paz pode tornar-se uma tensão, um nervosismo, um obstáculo à paz, uma obrigação, um dever que se somará à infelicidade e à inquietação do mundo.
Afirmar que estamos em paz não é negar nossos medos, nossas memórias, nossos sofrimentos… é colocá-los em seus devidos lugares, na corrente insensata e tranqüila da verdadeira Vida…“
 
Jean Yves Leloup
Fonte: http://www.gepazebem.org/a-paz-segundo-leloup.html

Nenhum comentário :