Ao ser
lançado o DVD do filme “Nosso Lar”, certamente será utilizado como material
paradidático em alguns cursos de Esperanto e uma pergunta surgirá: a palavra
“Umbral” foi traduzida como “Umbralo”, mas essa palavra não está no PIV. Por que
o tradutor optou por traduzi-la assim?
Antecipo-me na resposta:
Optei
por adotar o neologismo “Umbralo”, embora não tenha encontrado na literatura
espírita em Esperanto, essa tradução para o nome da região espiritual chamada
Umbral.
Em sua
tradução do livro “Nosso Lar” do início dos anos 1950, Luiz da Costa Porto
Carreiro Neto optou por traduzir a palavra “Umbral” como “Ombrejo”.
Não
considerando essa como a tradução mais adequada, nem do ponto de vista
linguístico, nem do ponto de vista espírita, optei por “Umbralo” e passo a
explicar os porquês.
Questão
sob o prisma linguístico...
Por ser
palavra de pouco uso coloquial, no Brasil, nos dias de hoje, entendamos
primeiramente o significado do substantivo comum “umbral”.
Dicionário Aurélio
1. Cada uma das peças verticais
das portas e janelas que sustentam as vergas; ombreira.
2. Limiar, entrada.
[Pl.: –brais.]
Dicionário Houaiss
n substantivo
masculino
1 Rubrica: carpintaria, cantaria, construção.
m.q.
ombreira
2 Derivação: por extensão de sentido.
local de entrada para um
interior; limiar
Ex.: o porto é o umbral da cidade.
Portanto, “umbral” em seu sentido
mais comum significa “limiar”, no caso, de uma entrada.
Para que se visualize,
imagine uma porta.
Bem abaixo dela, no chão, temos a soleira.
A parte da soleira
que se estende para dentro da casa, é o umbral.
A palavra “umbral” vem do
espanhol, língua onde tem significado idêntico.
O Espanhol, por sua vez, tirou a
palavra “umbral” da palavra “umbra”, que em Latim significa sombra. Justamente
porque quando se entra, passamos pelo umbral da porta para nos proteger do sol
na sombra.
Por
extensão, umbral significa a entrada ou o princípio de qualquer coisa. Por ex.:
O umbral de uma nova era.
Em Francês, umbral é “seuil”, em Inglês é “threshold”,
em Alemão “Schwelle”.
Nos dicionários de Português – Esperanto, a palavra
“umbral” é traduzida como “sojlo”.
Todas com significado de ponto inicial da
entrada, de soleira ou ponto de passagem de um lugar para outro.
Essa
“sombra”, que vindo do Latim passou para o Espanhol e dele para o Português, tem
uma conotação de abrigo, de proteção.
Não de algo negativo.
Em
Esperanto:
A
palavra “ombrejo” em Esperanto significa um lugar com sombras, mas que pode ser
muito agradável.
Por exemplo, se vou a um parque arborizado em dia de sol
escaldante, o lugar sombreado pelas copas de muitas árvores é um
“ombrejo”.
O PIV
não só define "Ombrejo" como local com sombra (física) como dá o exemplo:
"Loko kun ombroj: promeni en la ombrejoj de la parko".
Já a
palavra “Sojlo” define precisamente a “soleira” de uma porta ou o “limiar” de
alguma coisa.
Em um dicionário Espanhol – Esperanto, a tradução para a palavra
“umbral” é exatamente “sojlo”.
Aliás, o Português menos contemporâneo utilizava
essa palavra constantemente com esse significado. Ex.: “Quando veio a hora de
desembarcar, fê-lo com a mesma alegria com que o réu transpõe os umbrais do
cárcere.” (A Parasita Azul – de Machado de Assis).
Embora
de menor uso, a palavra “umbral” não é arcaica, ou seja, continua válida nos
dias atuais.
Ambas, “Ombrejo” e “Sojlo”, poderiam
traduzir a ideia espírita de “Umbral”, mas nenhuma traduziria completa e
precisamente essa ideia.
Questão
sob o prisma espírita...
O
Espiritismo passou aplicar a palavra “Umbral” como substantivo próprio. Como
nome de uma região específica.
A literatura espírita, especialmente nas obras de
André Luiz, define o Umbral como sendo um lugar vasto, com regiões de maior e de
menor grau de obscurantismo.
Algumas lembram um pouco a ideia católica de
purgatório ou até mesmo de inferno, mas outras não.
No livro “Nosso Lar” o
personagem Lísias diz que “O Umbral começa na crosta terrestre.”
O que
reforça a compreensão de que a palavra “Umbral” foi empregada com o significado
de “limiar”, de “lugar de passagem”.
Talvez a
ideia de “sombras”, quer pela influência cultural da teodiceia católica, já que
não corresponde totalmente à região chamada “Umbral”, quer pela similitude
sonora entre as palavras “Umbral” e “Ombrejo”, tenham levado Porto Carreiro Neto
a optar por traduzir “Umbral” como “Ombrejo”.
Ou, ainda mais provavelmente, pela
parcimônia em criar neologismos, com o objetivo de proteger a língua.
Postura
cuidadosa recomendada ainda nos dias atuais e sempre.
Especialmente lá no início
dos anos 1950, quando o Esperanto ainda contava aproximadamente 60 anos de
idade.
Mas,
como esclareci, a palavra “ombrejo” transmite uma noção incompleta do que vem a
ser o “Umbral”.
Allan
Kardec criou toda uma nomenclatura própria para o Espiritismo porque entendia
que uma ciência nova precisava de nomenclatura própria que a distinguisse.
Daí
criou as palavras Espiritismo (existia apenas Espiritualismo), espírita,
espiritista, médium, perispírito, entre muitas outras.
Algumas dessas palavras
criadas por Kardec vêm sendo apropriadas por outras filosofias e sincretismos,
mas Kardec entendia que para definir uma ideia nova era preciso uma palavra
nova.
Nessa
linha de raciocínio, já que nenhuma palavra definia exatamente a ideia de
“Umbral”, entendi como sendo mais acertada a proposição do neologismo “Umbralo”.
Não sem antes verificar se “Umbralo” estaria de acordo com a gramática do
Esperanto e se já não existia palavra homógrafo-homófona no léxico da língua,
com outro significado.
Naturalmente.
Porque, de fato, por mais que se diga
que algo é "parecido", em se tratando de concepção religiosa, ou é idêntico ou
então é diferente, mesmo que mantendo alguma similaridade, pois depende da
teologia de uma doutrina.
Um bom
exemplo disso é a palavra de origem sânscrita "Karma", que apesar de não
pertencer à nomenclatura espírita, é adotada informalmente por muitos espíritas,
mas não tem, no Hinduísmo de onde provém, o mesmo significado que a ideia
espírita de “Lei de Ação e Reação”.
Na mão
inversa, falando de doutrina hinduísta, o leigo costuma empregar a palavra
espírita “reencarnação” para ideias diferentes da concepção espírita, como por
exemplo, a ideia de “Sansara” que, do Sânscrito, seria o fluxo incessante de
renascimentos através dos mundos, movido pelo Karma, onde esse processo é uma
espécie de purgatório não metafísico.
Mas o conceito de “Sansara” tem variadas
concepções nas diversas tradições filosóficas da Índia.
O mesmo
ocorre com a “Metempsicose”, possibilidade de reencarnar em animais e até
insetos, que algumas religiões entendem como verdade, como a religião
popularmente conhecida como Movimento Hare Krishna.
O Espiritismo, por ser
evolucionista, não conjumina com a ideia da metempsicose, mas o leigo imagina
que “reencarnação” é a mesma coisa para todas as doutrinas que acreditam na
possibilidade da volta da alma ao mundo físico.
Existem outras diferenças entre
vários conceitos rotulados genericamente como reencarnação.
Assim,
por exemplo, não se poderia traduzir para o Esperanto como "purgatorio"
ou “infero” ideias como:
· Limbo, do Catolicismo, que não é nem céu
nem inferno nem purgatório.
· Sheol ou Gehinnom, do Judaísmo, que nem é céu nem
inferno, nem purgatório nem limbo, mas sim um local de purificação espiritual ou
punição para os mortos, onde a alma fica por doze meses e após esse período, irá
acender ao Olam Ha-Ba, o mundo a vir, ou será destruída se for muito
má.
· Hades, da mitologia grega, que seria um
submundo nos domínios de Hades, equivalente ao deus romano Plutão. Hades é o
nome desse deus e também de um lugar, dividido em regiões, como o Tártaro (lugar
de eterno tormento e sofrimento), onde as almas passariam por um julgamento.
Algo como um limbo-inferno, mas diferente.
· Naraka é um inferno, mas para os indianos
sempre é provisório, durando o tempo necessário para zerar o balanço de
pendências negativas etc.
Nem se
poderia traduzir para o Esperanto com a mesma palavra “paradizo”, ideias
como:
· Paraíso Cristão tem mais de uma concepção entre as
religiões cristãs.
De Jardim do Éden a um lugar com menos referências físicas
terrestres, como jardins e árvores.
· Paraíso Muçulmano, pelo menos para fins de Jihad (que
não significa "Guerra Santa”, ao contrário do que muita gente imagina, e sim a
luta interior do fiel buscando conquistar a fé perfeita), é um lugar de delícias
eternas com virgens disponíveis e submissas e a possibilidade de molestar quem
está no inferno, por diversão.
· Valhala Nórdico, onde os bravos Vikings tinham
direito às melhores maneiras de saciar sua fome, luxúria e sede de
sangue.
· Paraíso Indiano é provisório, mesmo que por
1000000000000 ou muito mais anos, gozando-se de uma colônia de férias com
duzentas estrelas. E quem vai para lá não é um despreparado qualquer, que fica
boquiaberto com tudo isso, mas alguém renascido como um deus poderoso, ou seja,
não como uma pessoa pobre que ganha uma herança, mas como um jovem executivo bem
sucedido usufruindo de sua mansão em Mônaco.
· Nirvana não é um céu = paraíso, mas um
estado de consciência ("nir" = sem + "vana" = grilhão) em que não se mantém o
apego ocidental de permanecer vivo e, preferencialmente, se dando bem aqui ou em
outro lugar. Trata-se, portanto, de outra conceituação.
· Terra Pura, numa escola do Budismo Mahayana,
não é céu, porque é uma espécie de "lumsojlo", ou melhor, uma "academia
em um spa" metafísico bem específico e direcionado para o Nirvana. Quem renasce
lá estaria numa realidade sem problemas e stress com o objetivo de acelerar seu
treinamento para o Nirvana.
· Campos Elíseos, na mitologia grega, era um lugar
paradisíaco (oposto ao Tártaro) de paisagens verdes e florido, no mundo dos
mortos, governado por Hades, onde as almas dos homens bons, como heróis, santos,
sacerdotes, poetas e deuses, e somente eles, repousariam após a morte. Lá
existia um vale onde corria o “rio do esquecimento”: um rio de leite que as
almas bebem por 1000 anos, até esquecerem tudo da vida terrena e se preparam
para reencarnar ou fazer a metempsicose. Esse atributo de voltar à vida física
era dado apenas às almas que iam para os Campos Elíseos. Portanto, um sistema
restritivo de reencarnação ou metempsicose. Em algumas versões esse lugar era
cercado por um muro gigantesco para separá-lo do Tártaro.
Claro
que abordei superficialmente cada caso, por isso peço perdão aos profitentes das
religiões citadas se cometi alguma inexatidão.
As citações servem apenas para
exemplificar que existem diferenças, às vezes sutis, às vezes não, de conceitos
tratados genericamente por “Purgatório” ou “Paraíso”.
Essa
explanação, ainda que sucinta, mostra diversas concepções para essas ideias e
procura demonstrar que uma única palavra não serve para traduzi-las.
Considerações finais
Não é a
primeira vez que ao traduzir para o Esperanto uma palavra técnica do Espiritismo
adota-se a palavra original espírita, por assim dizer, esperantizada.
Assim
aconteceu com a palavra “médium”, que em Esperanto ficou "mediumo".
Não se
buscou no Latim a sua tradução de origem, que é “intermediário”, para traduzi-la
como "peranto", por exemplo.
Pela mesma razão: definir um conceito específico.
A
palavra “médium” tem semântica própria que transcende à ideia laica de
“intermediário”.
Temos,
portanto, diante de nós uma questão não apenas de morfologia, mas de sintaxe e
de semântica da palavra “Umbral”, pelo significado que lhe deu o Espiritismo.
Ou
seja, temos aqui uma questão semiótica.
Por isso não bastava buscar no Latim a
origem da palavra “umbral”, no caso “umbra”, para traduzi-la: era necessário
conferir-lhe em Esperanto, a mesma semântica teologal espírita que possui na
língua portuguesa.
Porque essa palavra, como nome de um local no mundo
espiritual, surgiu em língua portuguesa.
Assim,
concluí que seria mais acertado utilizar o neologismo "Umbralo" para
“Umbral”.
Ademais,
a palavra “umbral” aparece pela primeira vez no filme de forma autoexplicativa:
“Acordei numa dimensão chamada Umbral, uma espécie de purgatório.”
Essa
frase dará ao leigo uma ideia, ainda que vaga ou incompleta, de que “Umbral” é
palavra espírita, com semântica própria, que merece alguma pesquisa para melhor
entendimento.
Disse que a ideia transmitida fica vaga ou incompleta porque o
filme mostra apenas uma das regiões do Umbral.
Mas, no âmbito do que pode e deve
o tradutor, penso que fizemos a opção mais acertada.
Aqui
está a frase e a tradução para o Esperanto, na forma que aparecerá no
filme:
Acordei numa dimensão chamada Umbral,
uma espécie de purgatório.
Mi vekiĝis en dimensio nomata
Umbralo, iuspeca purgatorio.
Pelos
motivos apresentados, espero que a palavra “Umbralo” seja adotada pelos
esperantistas espíritas e venha a ser incorporada futuramente no PIV.
Por fim,
expresso meus agradecimentos aos amigos que trabalharam na revisão de minha
tradução: Adonis Saliba, Aneta Ubik e Luiz Carlos Rusilo.
Entre nós, houve
consenso pela escolha de “Umbralo”.
Pedro
Jacintho Cavalheiro
Presidente da Comissão de Educação
da Liga
Brasileira de Esperanto
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