Um dos elementos mais devastadores da pandemia do Covid-19 tem sido a incapacidade de cuidar pessoalmente de entes queridos que ficam doentes.
Alguns tiveram que se despedir pela tela de um smartphone segurado por um profissional de saúde. Outros recorreram ao uso de walkie-talkies ou a acenos pela janela.
Como você pode superar a dor e a culpa avassaladoras que surgem quando você pensa em um ente querido morrendo sozinho?
Não tenho uma resposta para essa pergunta.
Visitantes inesperados
No início de sua carreira, Kerr foi incumbido, como todos os médicos, de se ater aos cuidados físicos de seus pacientes.
Mas ele logo percebeu um fenômeno com o qual enfermeiras experientes já estavam acostumadas.
À medida que os pacientes se aproximavam da morte, muitos tinham sonhos e visões de entes queridos falecidos que voltavam para confortá-los em seus últimos dias.
Mas ao ver a paz e o conforto que essas experiências de fim de vida pareciam proporcionar a seus pacientes, Kerr decidiu parar e escutar.
Os médicos são treinados para interpretar esses eventos como alucinações delirantes ou induzidas por drogas que podem justificar mais medicação ou sedação completa.
Um dia, em 2005, uma paciente terminal chamada Mary teve uma dessas visões: ela começou a mover os braços como se estivesse embalando um bebê, ninando seu filho que havia morrido ainda criança décadas antes.
Para Kerr, isso não parecia declínio cognitivo.
Como seria o atendimento médico se todos os médicos também parassem e escutassem?
O início do projeto
Assim, ao ver pacientes terminais chamarem seus entes queridos, muitos dos quais não viam, tocavam ou ouviam havia décadas, ele começou a coletar e registrar testemunhos daqueles que estavam morrendo.
Ao longo de 10 anos, Kerr e sua equipe de pesquisa registraram as experiências de fim de vida de 1,4 mil pacientes e famílias.
O que ele descobriu o espantou.
Eles incluíam visões de mães, pais e parentes há muito tempo perdidos, assim como animais de estimação mortos voltando para confortar seus antigos donos.
Tratava-se de ressuscitar relacionamentos, reviver amores passados e obter perdão.
Tecelão de sonhos
A primeira vez que ouvi falar sobre a pesquisa de Kerr foi em um estábulo.
Eu estava ocupada limpando a baia do meu cavalo.
Ele me contou sobre sua palestra no TEDx sobre o assunto, assim como sobre o projeto do livro em que estava escrevendo.
Não pude deixar de me emocionar com o trabalho desse médico e cientista.
Quando ele revelou que não estava avançando muito na escrita, me ofereci para ajudar. Ele hesitou a princípio.
O agente dele estava preocupado com a possibilidade de eu não ser capaz de escrever de forma acessível ao público, algo pelo qual os acadêmicos não são exatamente conhecidos. Insisti, e o resto é história.
Foi essa colaboração que me tornou uma escritora.
As comoventes histórias dos encontros de Kerr com seus pacientes e famílias confirmaram como, nas palavras do escritor renascentista francês Michel de Montaigne, "aquele que ensina os homens a morrer, ao mesmo tempo os ensina a viver".
Fiquei sabendo sobre Robert, que se via diante da perda de Barbara, sua esposa de 60 anos, e estava tomado por sentimentos conflitantes de culpa, desespero e fé.
Um dia, ele inexplicavelmente a viu pegando o bebê que haviam perdido décadas atrás, em um breve período de sonhos lúcidos que lembravam a experiência de Mary anos antes.
Robert ficou impressionado com a atitude calma e o sorriso de felicidade da esposa.
Foi um momento de pura plenitude, transformando sua experiência no processo da morte.
Barbara estava vivendo sua partida como uma época de amor reconquistado, e vê-la reconfortada deu a Robert um pouco de paz em meio à perda irremediável.
Para os casais mais velhos de que Kerr cuidava, ser separado pela morte após décadas de união era simplesmente imensurável.
Os sonhos e visões recorrentes de Joan ajudaram a curar a ferida profunda deixada pela morte de seu marido meses antes.
Ela o chamava durante a noite e sinalizava sua presença durante o dia, inclusive em momentos de lucidez plena e articulada.
Para sua filha Lisa, esses eventos significavam que o vínculo de seus pais era indestrutível.
Quando as crianças estão morrendo, geralmente são seus amados animais de estimação falecidos que aparecem.
Jessica, de 13 anos, que estava morrendo de câncer nos ossos, começou a ter visões de seu antigo cachorro, Shadow.
"Vou ficar bem", disse ela a Kerr em uma de suas últimas visitas.
Para a mãe de Jessica, Kristen, essas visões — e a tranquilidade resultante de Jessica — ajudaram a iniciar o processo ao qual ela vinha resistindo: deixá-la partir.
Isolados mas não sozinhos
O sistema de saúde é difícil de mudar.
Os sonhos e visões anteriores à morte ajudam a preencher o vazio que, de outra forma, poderia ser criado pela dúvida e pelo medo que a morte evoca.
Eles ajudam os pacientes terminais a se reunirem com aqueles que amaram e perderam, aqueles que os protegeram, os apoiaram e trouxeram paz.
Eles curam velhas feridas, restauram a dignidade e recuperam o amor.
Com hospitais e asilos ainda fechados para visitantes devido à pandemia de covid-19, pode ser útil saber que os pacientes terminais raramente falam sobre estar sozinhos.
Nada substitui poder abraçar nossos entes queridos em seus últimos momentos, mas pode ser um consolo saber que eles se sentem confortados.
A partir da BBC.
https://g1.globo.com/bemestar/viva-voce/noticia/2021/04/18/o-fenomeno-comovente-descoberto-por-medico-que-acompanha-pessoas-proximas-a-morte.ghtml
PARTIDA E CHEGADA.
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