(...) ”Paz, em hebraico,
é Shalom, e, literalmente, Shalom quer dizer: “estar inteiro”, “estar em
repouso”…
É então conveniente que perguntemos: o que nos impede de estarmos
inteiros?
O que nos impede de experimentarmos o repouso, isto é, de estarmos
em paz?
As respostas são múltiplas;
destaco apenas as que me parecem essenciais;
- O que nos impede de
estarmos inteiros, de estarmos inteiramente presentes na integridade do que
somos, é o medo.
- O que nos permite estarmos inteiros, estarmos
inteiramente presentes na integridade do que somos, é o amor.
O contrário do amor, e
portanto da realização do que somos, não é fundamentalmente o ódio, e sim o
medo.
Medo de quem?
Medo de
quê?
Medo de amar, melhor
dizendo, de se perder, pois amar antes de se encontrar é
perder-se.
Certamente, existe toda sorte de medo: do desconhecido, do
sofrimento, do abandono, da morte…
Todos esses medos podem resumir-se num
só: medo de ser “nada”.
Este medo nos leva a esforços inimagináveis, para
provarmos a nós mesmos e aos outros que somos alguma coisa e que “vale a pena”
sermos amados, que o merecemos…
Ser amado seria, portanto, um direito do
homem?
Infelizmente, este é um segredo muito bem guardado: aquele que procura
ou solicita o amor jamais o encontrará…
Só o encontramos no momento em que o
damos…
Unicamente quem ama, quem se torna amável e é capaz desse dom “gracioso”
recebe o amor gratuitamente.
O Amor jamais se manifesta
àquele que o pede, mas se revela sem cessar a quem o doa.
Aquele que
compreendeu e viveu isto sente-se em paz. E também inteiro, porque só o amor
nos realiza (e é o cumprimento da lei).
O medo nos “castra”, torna-nos
enfermos e impede a livre circulação da vida em todos os nossos membros.
E no
Amor não há “membros impuros”: “Tudo é puro para aquele que é puro”; é o Amor
que purifica.
Amar com todo o seu ser,
este é o mandamento (mitzvah), ou, mais exatamente, o “exercício” que nos é
proposto: “Amarás com todo o teu coração, com todo o teu espírito, com todas as
tuas forças”; isto traz também uma esperança.
Um dia amarei inteiramente, não
somente com o meu corpo, minha cabeça ou meu coração, mas “inteiramente”; um
dia, se almejo isto sem perder a esperança, estarei em paz.
Pois é suficiente
desejar amar, querer amar, mesmo que ainda não seja amar…
Bem sabemos que o
inferno não está nos outros; o inferno é não amar, é não se amar inteiramente,
até em nossa dificuldade e algumas vezes em nossa incapacidade de amar…
Nesse
caso, talvez seja bastante não mais querer, não mais ter medo deste medo sutil,
menos grosseiro, que é o medo de não ser amado, o medo de não amar…
Aquele que
perdeu o medo de ser “nada” não tem mais medo de tudo; paradoxalmente, é o medo
de ser nada que nos impede de ser tudo.
Se aceitássemos, por um instante, este
“nada” que somos, este “nada a mais e nada a menos” do que somos, então, nesse
mesmo momento, não haveria mais obstáculos à revelação e ao desdobramento do Ser
que ama, em nós e através de nós.
Se, supostamente, ser amado
é um direito do homem, ser capaz de doar é uma realização, uma graça divina
concedida ao homem; a alegria de participar da Dádiva e da Vida do Ser que faz
“girar a Terra, o coração humano e as demais estrelas”, generosamente…
Porém,
não fosse pelo fato de nos “sentirmos mal”, como seria possível aceitarmos “ser
nada” quando nos sentimos ser alguma coisa?
O termo “nada” pode parecer
negativo; talvez fosse preciso dizer simplesmente “ser”, sem acrescentar
qualquer palavra, para podermos pressentir que o que se soma ao “ser” é algo de
“mental” e compreendermos melhor a palavra do Cristo, precedida pela de Buda
(seis séculos antes): “O que é, é, o que não é, não é”.
Tudo o que é dito a
mais vem do mental ou do “mau”, ou ainda, em algumas traduções, do
“mentiroso”.
Sentir-se em paz é estar
num corpo relaxado, com o coração livre e a mente serena.
E conhecendo melhor,
hoje, as funções coordenadoras do cérebro, é sem dúvida pelo mental que devemos
começar.
Ser nada a mais (e nada a menos) do que somos – estar em paz –
pressupõe uma mente pacificada, em repouso, e é o segundo sentido da palavra
shalom.
Por que não estamos em repouso?
Não somente há o medo de
ser “nada” (ser mais ou ser menos do que somos), mas existem as lembranças, com
as quais nos identificamos e que tomamos por nosso verdadeiro ser.
O caminho
para a paz é aquele que nos faz passar das nossas identidades provisórias,
irrisórias, transitórias,para a nossa identidade essencial (eu sou o que eu
sou).
(...) Em resumo, o principal obstáculo à paz, o maior dos demônios é a
nossa própria mente, este reservatório de emoções passadas, que se derrama sem
parar sobre o presente; este “pacote de memórias” que denominamos ego, ou
eu.
Quem sofre ou é infeliz é sempre o eu e nossa identificação com o que não
somos realmente.
Que só o presente existe é um segredo bem guardado; o que
era, não é mais; o que será, ainda não é; se vivermos eternamente em nossos
arrependimentos e projetos, teremos que sofrer e passaremos ao largo do
“segredo”… “Ora ao teu Pai que está aí, dentro do segredo”, na presença do que é
presente.
São palavras do Evangelho e também palavras de cura…
A morte não existe ainda,
ela não é.
Só permanece este “Eu Sou”, que existe desde sempre e para
sempre.
Não podemos ir para outro lugar, senão onde estamos; e onde nos
encontramos aqui já estamos.
Por que procurar, em outra parte, a vida e a paz
que nós somos, se a paz é nossa verdadeira natureza, não está por
fazer?
Trata-se, primeiramente, de conferir menos importância àquilo que nos
“impede” de estar em paz; depois, não lhe dar importância alguma, se quisermos;
e isto significa aderir, instante após instante, ao que é, com um espírito
silencioso, uma mente serena, ou melhor, não identificados com as memórias e com
as emoções que essas memórias provocam.
Lembrar-se de que nossa verdadeira
natureza está em paz é uma forma universal de oração.
Essa rememoração de nosso
ser verdadeiro encontra-se, efetivamente, na base das práticas de meditação de
várias culturas ou religiões (dhikr – prática islâmica; japa – modalidade de
ioga; hesicasmo – seita antiga de místicos cristãos orientais, etc.).
Temos
medo de quê?
De perdermos a cabeça, perdermos a alma, de não sermos o que
nossas memórias nos dizem que somos, não sermos coisa alguma do que pensamos
ser?
Perdem-se as ilusões, os pensamentos, e fica somente o medo de morrer.
Se
eu paro de me identificar com o que deve morrer, permaneço já naquilo que sou
desde sempre.
Não pode haver outro artesão da paz que não seja aquele
cujo corpo está relaxado, que tem o coração livre e a mente pacificada.
Mesmo o
nosso desejo de paz pode tornar-se uma tensão, um nervosismo, um obstáculo à
paz, uma obrigação, um dever que se somará à infelicidade e à inquietação do
mundo.
Afirmar que estamos em
paz não é negar nossos medos, nossas memórias, nossos sofrimentos… é colocá-los
em seus devidos lugares, na corrente insensata e tranqüila da verdadeira
Vida…“
Jean Yves
Leloup
Fonte:
http://www.gepazebem.org/a-paz-segundo-leloup.html
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