Encontramos, no site da Revista do Instituto Humanitas Unisinos, uma bela entrevista com Yudith Rosenbaum, autora de Metamorfoses do mal: uma Leitura de Clarice Lispector (São Paulo: Edusp/Fapesp, 1999) e Clarice Lispector (São Paulo: Publifolha – Série Folha Explica, 2002), entre outros.
Nessa entrevista, a autora discorre sobre Clarice e sua obra.
Nesses tempos de grandes manifestações em nosso país, destacamos esse pedaço da entrevista:
“IHU On-Line – Qual foi o papel de Clarice Lispector durante a ditadura militar?
Yudith Rosenbaum -
Relembro aqui a resposta que a própria Clarice deu à pergunta do jornalista Júlio Lerner , durante entrevista concedida à TV Cultura em 1977. Lerner havia perguntado qual seria o papel dos escritores e intelectuais da época, ao que Clarice respondeu: “Falar o menos possível”. O engajamento de Clarice Lispector ainda é um tema polêmico, pois sempre foi cobrada pelos críticos a ter um posicionamento social mais explícito, a interferir de maneira mais contundente. O fato é que Clarice participou da passeata dos artistas em 1968 no Rio de Janeiro contra a repressão, não tendo nenhuma atuação direta na linha de frente da resistência à ditadura. Seu papel como escritora era buscar uma linguagem própria, original, que descortinasse as sutilezas das formas de poder e mostrasse a natureza contraditória e ambígua do ser humano – em qualquer tempo e lugar. Por isso, Clarice manteve-se distante dos apelos ideológicos, preferindo explorar o mundo das relações domésticas e interpessoais, espaço privilegiado para a reprodução das ideologias. No seu trabalho como cronista do Jornal do Brasil (de 1967 a 1973), levantou questões relativas à sua época, mas nunca se submeteu a qualquer patrulhamento que lhe tirasse a liberdade radical de dizer a verdade de si mesma. O processo de conscientização que sua literatura produziu nos anos difíceis da ditadura (e que produz até hoje) se deu pelo valor estético de seus textos, seja falando da intimidade de uma dona-de-casa, seja pelos relatos semi-biográficos em que mostra as desigualdades de classes sociais no Recife. Mesmo sem uma atuação militante, Clarice se posicionou com a literatura, qualificando o campo da linguagem como território privilegiado. No entanto, ela sempre deixou claro que a literatura, pelo menos para ela, não muda nada, não transforma nada.”
Estaria Clarice certa ao dizer que “não muda nada”?
Para quem deseja, a entrevista na íntegra!
Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line a professora Yudith Rosenbaum declara que “Clarice Lispector é uma escritora que se dedicou a uma busca interminável: a representação do indizível, ou seja, do que não se pode representar em palavras dentro do código convencional da linguagem”. E explica que esse desafio de dizer o que é impossível de dizer “fez de Clarice uma escritora atormentada e simultaneamente fascinada pelas descobertas que o exercício da escrita lhe reservava”.
“Clarice Lispector quer desmontar as máscaras e conhecer o que há por trás delas”
Por: IHU Online
Rosenbaum é graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Além disso, fez o mestrado e o doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professora de Literatura Brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo.
É autora de, entre outros, Metamorfoses do mal: uma Leitura de Clarice Lispector (São Paulo: Edusp/Fapesp, 1999) e Clarice Lispector (São Paulo: Publifolha - Série Folha Explica, 2002).
IHU On-Line - Passados 30 anos da morte de Clarice Lispector, qual é sua maior herança? O que faz desta escritora ainda tão atual?
Yudith Rosenbaum -
Clarice Lispector é uma escritora que se dedicou a uma busca interminável: a representação do indizível, ou seja, do que não se pode representar em palavras dentro do código convencional da linguagem.
Esse desafio - dizer o que é impossível de dizer - fez dela uma escritora atormentada e simultaneamente fascinada pelas descobertas que o exercício da escrita lhe reservava.
Sua aparição nas Letras, na década de 1940, foi um impacto que até hoje não parece de todo assimilado; não se adequava ao neo-realismo, que vigorava na literatura regionalista dos anos 1930, preferindo penetrar outra realidade, tão intensa quanto a região do Nordeste, onde passara a infância e a adolescência.
Seu mundo era o das entrelinhas, dos sussurros, da introspecção, das epifanias em meio ao cotidiano, das questões metafísicas, além e aquém da realidade prosaica.
Sua prosa mirava algo que não se entregava ao olhar realista; seus objetos se situavam no escuro, fora da zona iluminada pela razão instrumental.
Em meio aos romances preocupados com a documentação do real para melhor denunciar suas contradições, enfocando as mazelas de um Brasil desigual, Clarice tentou sondar outros sertões, outros desertos que a alma ocultava e que precisavam ser ouvidos, sem deixar de enfocar o social, mas de modo oblíquo e singular.
Penso que sua herança, após 30 anos de sua morte, está no território intimista que sua prosa revelou, dando corpo a um mundo de paixões, desejos, fantasmas, projeções e identificações presentes nas relações mais cotidianas. Ler Clarice hoje é entrar no universo do estranhamento, das visadas deslocadas do habitual, das coisas vistas ao revés, como essa definição de janela oferecida pela autora: “O que é uma janela se não o ar emoldurado por esquadrias?”?
Sua escrita é atual porque ainda buscamos decifrar sentidos fugidios, compreender o que se põe fora do campo do conhecido, aventurar-se a se posicionar no mundo sem clichês, sem estereótipos, sem disfarces – tudo isso sendo o foco incessantemente denunciado por Clarice.
Como Machado de Assis e Mário de Andrade , Clarice Lispector quer desmontar as máscaras e conhecer o que há por trás delas.
IHU On-Line – Quais são os mistérios que envolvem a vida e a obra de Clarice?
Yudith Rosenbaum -
Clarice abominava a imagem de escritora misteriosa que se havia construído ao seu redor.
Ela se dizia uma dona-de-casa que escrevia livros; aliás, ela sentava-se na sala com sua máquina datilográfica no colo, em meio aos filhos, empregada e visitas.
Era bastante resguardada do assédio da imprensa, mas recebia com prazer os que queriam conhecê-la sem formalidades.
Tendo sido esposa de diplomata, Clarice sofreu na pele as recepções burocráticas e o desenraizamento a que o casal teve de se submeter, o que lhe trouxe muita angústia.
Se há algo de misterioso em sua vida - e que ela sempre negou – transpôs-se para sua obra como um modo de ser.
Sua escrita aceita o mistério como parte do universo vivido, tomando o cuidado para não decifrá-lo e com isso perdê-lo.
Sua obra parece afirmar insistentemente que não sabemos tudo, não podemos e não devemos saber tudo. Essa zona de escuridão é justamente a condição de vermos o que não é visível na luz (como as estrelas no céu escuro).
Certas coisas só se revelam no mistério, desafiando o nosso entendimento egóico, sempre tão pretensioso e onipotente.
Clarice pessoa e Clarice escritora não se distinguem no que almejam; ambas querem “a coisa” irrevelada. O mistério, portanto, está no objeto da busca e não na autora e seu cotidiano.
IHU On-Line - A que fatores podemos atribuir o sucesso de sua obra? O que caracteriza o jeito Clarice de escrever?
Yudith Rosenbaum -
Nos primeiros vinte anos de sua obra, Clarice foi aceita mais pelos críticos e universitários do que pelo público em geral. Seu estilo ainda era visto como hermético e difícil.
Não exatamente pela camada semântica (sempre clara e simples), mas pela complexidade do conteúdo que evocava a partir de uma forma aparentemente banal e acessível.
Nos anos 1960, a publicação de Laços de família (1960), de A paixão segundo G.H, (1964) e do livro de contos A legião estrangeira (1964) tornaram a autora um sucesso nacional, atingindo leitores que antes se afastavam de seus textos.
A época era propícia para o desejo transgressor que sua obra expressava, abrindo canais para a necessidade de libertação e reposicionamento das pessoas no mundo compartimentalizado e alienante.
Talvez esteja aí um dos atrativos de sua literatura, pois ela revela o que nos aprisiona nas relações sociais e mostra aberturas fugazes, intensas e fascinantes.
O conto “Amor” é exemplar nesse sentido.
Ana, a protagonista, é colocada em uma situação totalmente diária, voltando de bonde para casa com as compras no colo. Súbita e inesperadamente, a visão de um cego no ponto do bonde faz ruir suas defesas tão bem armadas para não deixar explodir a existência em toda a sua força e violência.
A partir desse fato disruptor, “o mal estava feito”, conforme diz o narrador.
Estamos sempre tentando nos anestesiar para que a vida não nos invada (como Ana e seu cotidiano ordenado), e a escrita de Clarice nos desnuda, toca em nossa ferida.
Ao mesmo tempo em que gera o mal-estar no leitor desavisado, promove uma identificação que o ajuda a compreender seus próprios mecanismos sociopsíquicos, sem nenhuma teorização sobre eles. Seu estilo é marcado por reiterações, alusões, frases estranhas cuja sintaxe desobedece algumas regras gramaticais, adjetivações paradoxais (por exemplo: “ardor de burra”, no conto “A imitação da rosa”), pontuação expressiva que também foge às convenções (seis travessões iniciando e fechando o romance A paixão segundo G.H, ou uma vírgula começando Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres), ironia e vocabulário grotesco, entre tantos outros elementos. Para além de tudo isso, sua escrita nos toca de forma intuitiva, não racional ou intelectual, daí o alcance de seu texto e a adesão dos leitores.
IHU On-Line - Qual foi o papel de Clarice Lispector durante a ditadura militar?
Yudith Rosenbaum -
Relembro aqui a resposta que a própria Clarice deu à pergunta do jornalista Júlio Lerner , durante entrevista concedida à TV Cultura em 1977.
Lerner havia perguntado qual seria o papel dos escritores e intelectuais da época, ao que Clarice respondeu: “Falar o menos possível”.
O engajamento de Clarice Lispector ainda é um tema polêmico, pois sempre foi cobrada pelos críticos a ter um posicionamento social mais explícito, a interferir de maneira mais contundente.
O fato é que Clarice participou da passeata dos artistas em 1968 no Rio de Janeiro contra a repressão, não tendo nenhuma atuação direta na linha de frente da resistência à ditadura.
Seu papel como escritora era buscar uma linguagem própria, original, que descortinasse as sutilezas das formas de poder e mostrasse a natureza contraditória e ambígua do ser humano – em qualquer tempo e lugar.
Por isso, Clarice manteve-se distante dos apelos ideológicos, preferindo explorar o mundo das relações domésticas e interpessoais, espaço privilegiado para a reprodução das ideologias.
No seu trabalho como cronista do Jornal do Brasil (de 1967 a 1973), levantou questões relativas à sua época, mas nunca se submeteu a qualquer patrulhamento que lhe tirasse a liberdade radical de dizer a verdade de si mesma.
O processo de conscientização que sua literatura produziu nos anos difíceis da ditadura (e que produz até hoje) se deu pelo valor estético de seus textos, seja falando da intimidade de uma dona-de-casa, seja pelos relatos semi-biográficos em que mostra as desigualdades de classes sociais no Recife. Mesmo sem uma atuação militante, Clarice se posicionou com a literatura, qualificando o campo da linguagem como território privilegiado.
No entanto, ela sempre deixou claro que a literatura, pelo menos para ela, não muda nada, não transforma nada.
IHU On-Line - E o que dizer da relação de Clarice com a magia/bruxaria?
Em que medida isso influenciou em seus escritos?
Yudith Rosenbaum -
A pergunta é curiosa, porque Clarice foi convidada para participar de um Congresso de Bruxaria em Bogotá, em 1976, convite que ela considerou pitoresco. Mas aceitou com naturalidade, lendo o conto “O ovo e a galinha”, que ela mesma diz não entender.
De certa forma, existe uma “Clarice bruxa”, que expressa na linguagem misturas macabras e feitiços muitas vezes maléficos.
Talvez ela tenha influenciado mais os bruxos do que vice-versa.
O mal é uma categoria importante na obra clariciana e talvez por aí haja correspondências com a magia e a bruxaria.
Para a escritora, o mal existe como pulsão transgressora, perversa e desorganizadora de tudo o que teima em permanecer o mesmo.
As pessoas guardam em seus reservatórios inconscientes uma energia tanática, destinada a subverter a ordem e destruir o status quo.
Há mais de cem anos, a psicanálise mostrou como reprimimos o que é indesejável socialmente e nos neurotizamos.
O preço da civilização é esse mal-estar da cultura, que a obra clariciana põe em evidência.
Disso para a bruxaria é um passo, já que o que não posso expressar ganha força quando encoberto, surgindo sob formas disfarçadas e dissimuladas.
A magia é um modo de destampar o que já se converteu em mal e precisa ser exorcizado.
O conto “A quinta história”, por exemplo, é quase uma receita de bruxaria, forjando uma poção mágica para matar baratas.
O álibi da dedetização mal esconde a liberação do desejo sádico de matar.
Como num ritual alquímico, a narradora se descobre uma amante excitada e uma assassinada compulsiva, enquanto mistura os ingredientes no seu caldeirão.
O leitor acaba sendo a “vítima” seduzida por uma escrita potente e desagregadora dos padrões, fazendo da autora uma bruxa da linguagem.
IHU On-Line - Como é a forma de Clarice falar de amor? Como ela descreve o amor em suas obras?
Yudith Rosenbaum -
O amor na obra de Clarice Lispector é, freqüentemente, uma experiência difícil, repleta de tensões, desencontros, excessos.
É o “amor com garras”, do conto “Os desastres de Sofia” (A legião estrangeira).
Amar é muitas vezes uma via-crucis, uma trajetória de provações, um processo penoso extasiante, que pode se dar no encontro/confronto com os seres mais inusitados: baratas, cachorros, macacos, rosas, livros, professores, primos, galinha, pintinho etc.
A vivência do amor nos textos de Clarice pede uma espera nem sempre tranqüila; pede uma disponibilidade para agüentar as diferenças, as alteridades tantas vezes destruidoras.
A relação eu X outro é central na obra clariciana, mobilizando afetos misturados, pelos quais amor e ódio se contaminam mutuamente, revelando reversibilidades constantes.
Por trás do desejo amoroso, ouve-se a pulsação da fúria; no interior da agressividade, o que se sente é a ternura mais funda.
Na dialética dos amores, que podem ser perversos, impossíveis, platônicos, nem sempre a síntese triunfa.
As ligações se fazem como laços sufocadores, principalmente quando se trata do amor em família, amor viciado e condenado a se rotinizar.
Mas o que lemos como marca constante é a carência humana, uma busca sem fim de um outro que nos complete, nos salve de uma solidão intrínseca.
Na verdade, a maior força de Eros nos textos de Clarice está na palavra, essa portadora de sentidos e não-sentidos, flecha errante que esconde mais do que esclarece, mas que se abre, amorosamente, ao fluxo da vida e da morte.
Clarice dizia que havia nascido para escrever e amar.
Não se trata apenas do amor homem/mulher, mas de toda entrega que traz junto o risco da perda e da desintegração.
Mesmo o amor à literatura, face luminosa de uma escritora intensa e insatisfeita, carrega tanto as marcas da negatividade quanto da redenção.
“Escrever”, diz Clarice, “é uma maldição. Mas uma maldição que salva”.