Um conceito
ancestral de Vida Sagrada
Ecologia e
Espiritualidade: poucas pessoas costumam combinar esses dois
conceitos - afinal, para a mentalidade moderna ocidental, a
espiritualidade – qualquer espiritualidade - é algo que deve ser mantido
separado de outras áreas de nossas vidas.
Não é por acaso: a ingerência de
organizações religiosas sobre ações de governos e indivíduos trouxe e vem
trazendo conseqüências nefastas – estados totalitários, fanatismo, segregação e
preconceito, terrorismo e muitos outros problemas de nossos dias são motivados
pela influência de idéias 'religiosas' sobre o pensar e agir das
pessoas.
As razões para
pensarmos e agirmos assim são muitas e suas origens recuam séculos – mas não são
o escopo deste texto.
Basta saber que em momento nenhum da história afastamo-nos
da espiritualidade, por uma razão muito simples: ao contrário do que podem
pensar e desejar ateístas, ela faz parte da essência humana e se faz sentir até
mesmo nas mais racionais ciências de nossos tempos.
Eco-Espiritualidade
hoje:
O
termo"Eco-Espiritualidade" foi utilizado pelo geólogo
Thomas Berry em sua proposta para uma revolução de costumes
conhecida como "Sociedade Ecozóica" - a criação de uma nova
forma de vida, pautada em valores que restaurem a ligação entre o ser humano e a
natureza não apenas pela necessidade física de se combater a degradação
ambiental, mas também como uma filosofia/religião que traga novamente essa
comunhão com o mundo também à nossa mente e à nossa alma - como os povos da
Antiguidade.
A partir dessa
percepção, convido o amigo internauta a conhecer nas páginas a seguir um pouco
mais dessa proposta e como ela se encaixa perfeitamente a diversos temas
abordados noutras seções deste webiste.
Começamos com uma
pequena introdução à questão da espiritualidade em nossos dias - por que há
tanto preconceito com as religiões?
Por que dentre estas as correntes pagãs
(xamanismo, druidismo, etc) são tão negligenciadas?
Quais as origens desse
preconceito?
Qual o papel da espiritualidade em nossos dias?
Uma breve história da
Desespiritualização Ocidental
A história da
civilização ocidental está diretamente atrelada à história da religião cristã –
a numeração dos anos, os feriados, valores culturais de nossos dias não nos
deixam esquecer desse fato.
Queiramos ou não, gostemos ou não disso, o pensar e
o agir ocidental estão intimamente vinculados aos valores filosóficos do
cristianismo.
É irônico que o mundo
ocidental tenha gerado o conceito de “estado laico”, separando o poder
eclesiástico do poder político.
Por conta dos excessos de estados religiosos
extremistas de nossos tempos, atualmente defendemos esse conceito com fervor –
parece que preferimos ignorar o fato de que esse conceito surgiu justamente por
conta dos desmandos em alguns períodos da própria igreja cristã.
Unindo-se o quanto
exposto nos dois parágrafos acima, temos no mundo ocidental valores
sócio-culturais predominantemente cristãos em sua essência, ao mesmo tempo que
refutamos a possibilidade de um governo estar atrelado a esta ou aquela
religião. Uma contradição, sem dúvida.
A separação entre
estado e religião é a manifestação macrocósmica da separação filosófica entre
corpo e da alma no nível do indivíduo – e os danos são facilmente identificados
tanto na micro quanto na macroesfera.
No que diz respeito ao estado, a origem
dessa separação é o descontentamento acumulado por séculos de monarquias
totalitárias chanceladas pela igreja – ela própria uma monarquia – que nem
sempre usaram de bom senso em suas ações e condutas.
A Reforma e o Iluminismo
foram os primeiros movimentos de contraposição a essa condição, e poucos séculos
depois Karl Marx foi veemente defensor dessa separação em sua
obra.
Mas o pensamento de Marx só foi possível porque, antes dele, outros
pensadores combateram a intolerância e o poder excessivo da igreja e do clero:
séculos antes, Descartes, Bacon e outros Iluministas começaram
a minar o poder da igreja ao apresentar uma nova percepção do universo como um
grande sistema mecânico, em que não havia papel para Deus.
Este novo modelo de
universo abriu caminho para o Mercantilismo, em que tudo – animais, plantas,
seres humanos – tudo passou a ser comercializável e explorável.
É irônico que o
pensamento mecanicista de Descartes só foi possível graças à negação e
condenação da matéria por parte da igreja na Idade Média – a mesma igreja que
Descartes tanto combatia.
Por ora basta: não recuaremos à influência do
asceticismo oriental sobre o pensamento cristão em seus primórdios para explicar
como tudo começou.
Basta saber que, voltando no sentido inverso, temos a
“negação da matéria” pela igreja, que possibilita a “coisificação” da natureza
dos iluministas cartesianos, que por sua vez estimulou o mercanitilismo e seus
irmãos bastardos, a exploração de recursos naturais, e o escravagismo; a
necessidade de “produzir mais” para comercializar mais originou a Revolução
Industrial do séc. XIX: a coisificação e a comercialização da natureza atingia
níveis inéditos, as relações de comércio que diziam ser contra a escravidão
geraram o proletariado, a ilusão da produção em escala industrial gerou o êxodo
rural, este deu origem à urbanização e esta, por sua vez, nos presenteou com
suas mazelas – violência, trânsito, poluição.
Milênios de relação de dependência
recíproca entre o ser humano e a natureza chegavam ao fim: surgia o capitalismo,
e o pensamento de Marx – ponto original deste raciocínio – alertava para os
frutos venenosos dessa nova relação social.
Para os que gostam de
esquemas (lembrando que esquemas são sempre simplistas), temos o
seguinte:
Negação da Matéria
>
|
Coisificação da Natureza
>
|
Mercantilismo >
|
Industrialização
>
|
Urbanização
|
Corpo = prisão da
alma;Natureza = tentação; Sagrado no Céu, Terra
Profana
|
Se natureza não é divina, não
tem alma.
|
O que não tem alma não sente e pode
ser comercializado/escravizado
|
Para comercializar, tenho de
produzir mais
|
Para facilitar produção /
comercialização, concentro
pessoas
|
É curioso notar que
há um elemento comum presente em todos esses estágios de nossa história recente:
a espiritualidade.
Foi uma organização voltada para os assuntos do espírito – a
igreja - que originou o processo, ao negar a sacralidade da carne, da terra e da
natureza, ao negar o divino na matéria.
O que não é sagrado não tem espírito,
portanto não sente, não pensa, não reage - e pode ser comercializado.
O
mercantilismo impulsionou as grandes navegações e os descobrimentos, pois tinha
como meta a descoberta de novas rotas comerciais, novas mercadorias, novos
mercados.
A história se repetia por todo o globo: uma terra era “descoberta”,
para em seguida ser invadida pelos conquistadores que, de uma forma ou de outra,
oprimiam, reprimiam ou suprimiam a população local.
Pautado no pensamento
medieval de que os que não eram cristãos eram “infiéis” e, portanto, não
possuíam alma, a igreja tolerou, incentivou e patrocinou a escravidão nas
Amércias, no Oriente e principalmente na África – valia tudo para produzir
mais.
Surgia um processo
que ainda se encontra em curso.
Sabe-se que quanto maior a produção mais se
precisa de mercado - e quanto maior o mercado, mais se precisa de produção.
A
relação com o lucro e com a produção foi criticada com veemência na corrosiva
sátira “Uma Modesta Proposta” do escritor irlandês Jonathan
Swift conhecido como autor de “As Viagens de Gulliver”.
Em sua
“Modesta Proposta”, Swift advoga com sarcasmo que a solução para a fome
na Irlanda era que as famílias usassem seus recém nascidos como alimento,
aumentando a quantidade de nutrientes disponíveis ao mesmo tempo em que
diminuíam a quantidade de pessoas a serem alimentadas.
Dentro da lógica moderna
do mercado, essa proposta é inatacável.
Mas se você, leitor, considera-a
repugnante, é porque existem valores outros em ação: a ética, a moral, os
valores sociais: domínios da consciência, da filosofia e da espiritualidade.
Mais um exemplo da nociva dicotomia em que vivemos atualmente.
Voltando à nossa
cronologia, o surgimento de novas tecnologias nos séculos XVIII e XIX trouxe uma
ruptura brutal na relação entre o ser humano e a natureza: mesmo as mazelas
trazidas pela monocultura e pela escravidão do período das grandes explorações
não pode ser comparado em escala e extensão ao que o ser humano faria com o
auxílio da filha bastarda da alma humana: a máquina.
Ninguém é cínico o
suficiente (assim espero) a ponto de atacar o uso de máquinas e de tecnologia
como se fosse um moderno “luddita” (um seguidor das idéias do folclórico inglês
Ned Ludd que, no século XIX, rebelou-se contra as novas técnicas de tecelagem
que ameaçavam os métodos tradicionais transmitidos geração a geração).
Você que
lê estas linhas o faz através de uma complexa máquina – e as linhas foram por
mim redigidas numa máquina similar.
Como tudo, máquinas não são o
problema: o problema é o uso que delas fazemos.
As questões prementes
de nossos dias – esgotamento de recursos naturais, poluição, superurbanização,
violência, má concentração de renda, pobreza, infraestrutura urbana, para citar
alguns – todas essas questões vêm de uma falta de parâmetros que sejam capazes
de realmente reger a atividade humana, não através de leis – “leis foram feitas
para serem burladas” – mas através do bom senso.
Do senso comum.
Em sociedades ditas
“primitivas”, a figura do jurista costuma se confundir com a do sacerdote.
Afinal, a verdadeira justiça é um atributo divino e não humano.
Não é acaso que
a imagem tradicional da Justiça a adornar as mesas de advogados e juízes seja a
de uma deusa: a grega Atena.
Também não é por acaso que diversas correntes
cristãs aguardem o “Juízo Final” e que no hinduísmo exista a busca pela justiça
da vida – o Dharma, comumente traduzido como “a lei”, mas que significa muito
mais do que isso.
Para o hinduismo,
Dharma é “aquilo que sustenta e dá apoio”, a essência de algo.
A
compreensão do Dharma está na base de todas as atividades humanas,
desde as mais mundanas ações em sociedade até as mais profundas questões de
ordem espiritual.
Em todos os casos, agir contra o Dharma é quebrar a
ordem do universo, é desrespeitar as leis naturais que regem nossas vidas.
Os
gregos temiam essa ação, por vezes classificando-a como
‘Hibris” – arvorar-se de algo que não é sua real
natureza, não é seu Dharma.
Eis a raiz de nossas
questões modernas: incapazes de agir de acordo com seu ‘Dharma’
coletivo, a espécie humana não consegue mais alinhar a sua
Verdade, a sua Natureza, à Verdade da Natureza da qual fazemos
parte.
O resultado, como temiam os gregos, é catastrófico: afastamo-nos de nossa
natureza, perdemos nossa identidade, passamos a vagar a esmo sem saber ao certo
de onde viemos e para onde seguimos.
Compreender a malha
da criação da Natureza tem sido a tarefa de gerações e gerações de cientistas e
pesquisadores ao longo de séculos e ao redor do mundo.
Pesquisas do genoma,
clonagem, células-tronco, meteorologia, materiais sintéticos: todos os avanços
da ciência moderna – avanços que permitiram a criação das máquinas que me
facultam escrever estas linhas e você a lê-las - podem ser positivos se esse é
nosso Dharma, se essa é a nossa Verdade.
Mas quando usados de forma
negligente ou equivocada, trazem poluição, consumismo, esgotamento de recursos –
todas as mazelas acima mencionadas.
Se o raciocínio
destas linhas parece circular, isso é proposital: a intenção é mesmo a de criar
um senso de repetição que traga a cada vez que um tema é mencionado um
aprofundamento da questão central.
Mas qual é a questão central?
Precisamos de
espiritualidade.
Precisamos resgatar a
esfera espiritual em nossas vidas – não necessariamente através desta ou daquela
senda espiritual, não necessariamente a espiritualidade no sentido de religião
organizada, não necessariamente através de textos ou escrituras sagradas,
palavras de profetas ou ensinamentos de algum guru ou instrutor.
O que
precisamos de fato é de um senso de que há no mundo em que vivemos uma Verdade,
um Dharma que sustenta nossa existência e aumenta nossa compreensão dos
processos mais sutis e profundos de nossas vidas como parte da Grande
Vida.
Teorias como a
Hipótese Gaia de James Lovelock, ou a Filosofia de
Processos de Alfred North Whitehead, ou a proposta de
Sociedade Ecozóica de Thomas Berry, a obra de
Fritjoff Kapra ou ainda as explanações quânticas de
Amit Goswami – todas essas correntes de pensamento não só
reconhecem a interconexão em tudo que há como também a existência de alguma
forma de ‘espiritualidade’- uma força ou consciência inquantificável
pela mente racional de nossos tempos: não raro, para explicar suas percepções
esses estudiosos recorrem a conceitos que em tese nada têm de científicos, pois
pertencem aos domínios da espiritualidade.
Esta é a
História da Não-Religião: de suas origens até nossos dias, vimos seu
surgimento como reação aos excessos da religião institucionalizada, mas vimos
também que essa reação, como tudo no universo, trouxe conseqüências nem sempre
desejáveis.
É preciso entender que até mesmo os hoje odiosos conceitos de
Descartes foram fundamentais para sua época: naquele contexto, Descartes e os
Iluministas foram os agentes de uma necessária revolução que retirasse o ser
humano ocidental da estagnação em que se encontrava; do mesmo modo, a Revolução
Industrial teve seu papel fundamental e positivo na nossa história recente.
O
contexto histórico valida todas as ações acima, perfeitas para o momento em que
ocorreram.
Contudo, como bem diz o pensador italiano Domenico De
Masi, “precisamos nos livrar dos valores que regiam o trabalho na
Revolução Industrial, precisamos nos livrar do ‘nine-to-five’: nossos tempos
precisam de novos valores, que reflitam nossas necessidades atuais de
trabalho.”
Estamos diante de uma
oportunidade única de olhar para o passado e agradecer aos nossos ancestrais
pelas corajosas revoluções que eles promoveram.
Ao mesmo tempo, porém,
precisamos estar atentos ao momento em que vivemos, para que atualizemos os
valores dessas revoluções de forma a torná-las ainda válidas, de forma a
permitir que evoluam.
E para que isso seja realmente eficaz, precisamos ter
sempre um olho no futuro, para antever os resultados de nossas ações atuais,
unindo passado, presente e futuro numa única unidade de tempo,
constante e contínua, na qual tudo são processos e adequações.
Este é o conceito
do Mundo Espiritual.
Esta é a dimensão da Verdade das coisas, e através dessa
verdade podemos agir com Justiça – não humana, mas Natural.
E, portanto,
Divina.
O passar do tempo nos
aproxima de uma percepção espiritual mais aguda, algo que mesmo a raivosa mente
de Descartes reconheceu: “no final, sinto-me
constrangido a confessar que, dentre todas as coisas em que eu acreditava, não
há nada que eu não questione nalgum nível.”