sábado, 20 de abril de 2013

ENCONTRAR O CAMINHO



 
Em outros tempos e civilizações, esse caminho de transformação espiritual foi restrito a um número relativamente limitado de pessoas; agora, no entanto, se se quiser preservar o mundo dos perigos internos e externos que o ameaçam, uma grande porção da raça humana deve procurar o caminho da sabedoria.
 
Neste tempo de violência e desintegração, a visão espiritual não é um luxo elitista, mas algo vital para a nossa sobrevivência. 
 
Seguir o caminho da sabedoria nunca foi mais urgente nem mais difícil.
 
Nossa sociedade está dedicada quase inteiramente à celebração do ego, com todas suas tristes fantasias sobre sucesso e poder, e celebra exatamente aquelas forças da ganância e da ignorância que estão destruindo o planeta.
 
Nunca foi tão difícil ouvir a voz sem lisonjas da verdade e, uma vez ouvida, nunca tão difícil segui-la: porque não há nada no mundo que nos cerca que ampare nossa escolha, e a sociedade inteira em que vivemos parece negar cada ideia de sacralidade ou significado eterno.
 
Assim, em tempos do mais agudo perigo, quando precisamente nosso futuro está em risco, nós, como seres humanos, nos encontramos aturdidos como nunca, presos num pesadelo que nós mesmos criamos.
 
Mas há uma significativa fonte de esperança nessa trágica situação, que consiste no fato de que os ensinamentos espirituais das grandes tradições místicas ainda estão disponíveis.
 
Infelizmente, no entanto, há muito poucos mestres que corporificam esses ensinamentos e uma falta quase total de discernimento naqueles que buscam a verdade. 
 
O Ocidente tornou-se um paraíso para os charlatães espirituais.
 
No caso de um cientista pode-se verificar quem é genuíno e quem não, porque outros cientistas podem examinar sua formação e testar suas descobertas.
 
Mas no Ocidente, sem a linha-mestra e os critérios de uma próspera e amadurecida cultura da sabedoria, é quase impossível estabelecer a autenticidade dos chamados "mestres".
 
Qualquer um, ao que parece, pode posar de mestre e atrair seguidores.
Esse não era o caso no Tibete, onde era muito mais seguro escolher um caminho particular ou um orientador para seguir.
 
Os que chegam pela primeira vez ao budismo tibetano sempre querem saber por que se atribuí uma importância tão grande à linhagem, à ininterrupta cadeia de transmissão de mestre para mestre.
 
A linhagem serve como proteção e garantia essenciais: ela mantém a autenticidade e pureza do ensinamento.
 
Sabe-se quem é um mestre sabendo-se quem é o mestre dele.
 
Não se trata de preservar algum conhecimento ritualista, fossilizado, mas de transmitir de coração a coração, de mente a mente, uma sabedoria essencial e viva, e seus métodos hábeis e poderosos.
 
Reconhecer quem é e quem não é um Mestre verdadeiro é um assunto exigente e sutil; e numa época como a nossa, viciada na diversão, nas respostas fáceis e nos expedientes rápidos, os atributos de maestria espiritual, mais sóbrios e nada teatrais, podem muito bem passar despercebidos.
 
Nossas idéias sobre o que é santidade, piedade, brandura e mansidão podem cegar-nos para a manifestação dinâmica e às vezes exuberantemente jovial da mente iluminada.
 
Como escreveu Patrul Rinpoche: "As qualidades extraordinárias de grandes seres que ocultam sua natureza escapam as pessoas comuns como nós, apesar dos nossos melhores esforços para observá-las.
 
Por outro lado, mesmo os charlatães comuns são especialistas em enganar os outros comportando-se como santos".
 
Se Patrul Rinpoche escreveu isso no Tibete do século passado, o que escreveria hoje no caos do nosso supermercado espiritual contemporâneo? 
 
Então, o que fazer hoje, nesta época de absoluta descrença, para encontrar a confiança que é tão necessária para seguir o caminho espiritual?
 
Que critérios podemos usar para saber se um mestre é ou não genuíno? 
 
Lembro-me muito bem de haver estado junto a um mestre que conheço quando ele perguntou aos seus discípulos o que os havia levado até ele e por que confiavam nele.
 
Uma mulher disse: "Consegui ver o quanto você realmente quer, mais que qualquer outra coisa, que entendamos e apliquemos os ensinamentos, e com que habilidade os dirige para nos ajudar a chegar a isso".
 
Um homem dos seus cinquenta anos disse: "O que me toca não é aquilo que sabe, mas o fato de possuir mesmo um coração bom e altruísta". 
 
Uma mulher de trinta e tantos anos confessou: "Quis fazer de você minha mãe, meu pai, meu terapeuta, meu marido, meu amante; o senhor calmamente ficou comigo até o fim do drama de todas essas projeções e nunca, jamais, me abandonou".
 
Um engenheiro com vinte e poucos anos disse: "O que descobri em você foi que é verdadeiramente humilde, que quer o melhor para todos nós, e que mesmo sendo um professor jamais deixou de ser um aluno dos seus grandes mestres".
 
Um jovem advogado disse: "Para você os ensinamentos é que são o mais importante.
 
Às vezes chego a pensar que o seu ideal seria fazer-se quase ausente, simplesmente transmitindo os ensinamentos do modo mais generoso e desprendido possível".
 
Outro estudante disse, com timidez: "De início fiquei aterrorizado de me abrir com você.
 
Já fui ferido muitas vezes antes.
 
Mas, à medida que fui me abrindo, comecei a perceber mudanças reais em mim e aos poucos me senti cada vez mais grato a você porque percebi o quanto estava me ajudando.
 
E então descobri em mim uma confiança tão profunda em você, mais profunda do que eu jamais teria imaginado".
 
Finalmente, um operador de computador na casa dos quarenta falou: "Você foi um maravilhoso espelho para mim e me mostrou duas coisas: o aspecto relativo de quem eu sou e o aspecto absoluto de quem eu sou.
 
Posso olhá-lo e ver claramente — não pelo que você é, mas pelo que está refletindo de mim mesmo — toda a minha confusão relativa.
 
Mas posso também olhar e ver, refletida em você, a natureza da mente, da qual tudo está surgindo, momento a momento".
 
Essas respostas nos mostram que os verdadeiros mestres são gentis e compassivos, são incansáveis no seu desejo de partilhar a sabedoria que adquiriram dos seus mestres; nunca abusam ou manipulam seus discípulos, em qualquer circunstância; haja o que houver, nunca os abandonam; servem não aos próprios fins mas à grandeza dos ensinamentos; e são sempre humildes.
 
A verdadeira confiança só pode e deve aumentar em relação a alguém que você, com o tempo, descobrir que personifica essas qualidades.
 
Verá que essa confiança torna-se a base da sua vida, pronta para dar-lhe apoio em todas as dificuldades da vida e da morte.
 
No budismo estabelecemos a autenticidade de um professor ou professora conforme sua orientação esteja ou não de acordo com os ensinamentos do Buda.
 
Nunca é demais deixar claro que é a verdade do ensinamento que é importante, e nunca a personalidade do mestre.
 
Por isso o Buda nos recorda nas "Quatro Confianças":
Confie na mensagem do mestre, não na personalidade dele;
Confie no significado, não apenas nas palavras;
Confie no significado real, não no provisório;
Confie na sua própria mente de sabedoria, não na sua mente comum, que faz julgamentos.
 
Assim, é importante lembrar que o verdadeiro professor, como veremos, é o porta-voz da verdade: é a compassiva "manifestação da sabedoria" dessa verdade.
 
Todos os budas, mestres e profetas, de fato, são as emanações dessa verdade, surgindo sob incontáveis aparências, hábeis e compassivas, para guiar-nos por meio do seu ensinamento de volta á nossa verdadeira natureza.
 
Primeiro então, mais importante do que encontrar o professor é encontrar e seguir a verdade do ensinamento, porque é fazendo uma conexão com a verdade do ensinamento que você vai descobrir sua ligação viva com um mestre.
 
 
Sogyal Rinpoche, in
O livro tibetano do viver do morrer, págs. 172-5

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