IMPLICAÇÕES PSICOLÓGICAS E SOCIAIS DA REENCARNAÇÃO
Escreve: Jaci Regis Em: Junho de 2010 http://viasantos.com/pense/arquivo/1270.html
Em uma reunião de estudos do Instituto
Cultural Kardecista de Santos (ICKS), realizada habitualmente às
sextas-feiras, às 20 horas, durante a discussão sobre reencarnação, foram
feitas muitas perguntas sobre as dificuldades para que essa lei seja
plenamente aceita pela cultura.
Neste trabalho pretendemos levantar algumas
questões relativas à reencarnação e sua posição na Doutrina Espírita,
comparativamente à aceitação dessa lei nos países asiáticos. Tentaremos
também enumerar as dificuldades da cultura ocidental judaico-cristã em
aceitar a tese das vidas sucessivas.
Allan Kardec só aceitou a reencarnação após
uma análise profunda. Eis o que ele diz na Revista Espírita de abril de 1860,
no bojo de um longo artigo sobre a formação da Terra, analisando o valor das
comunicações dos espíritos:
“Como se vê, temos muitos motivos para não
aceitar levianamente todas as teorias dadas pelos espíritos. Quando surge
uma, fechamo-nos no papel de observador. Fazemos abstração de sua origem
espírita, sem nos deixar ofuscar pelo brilho de nomes pomposos. Examinamo-la
como se emanasse de um simples mortal e vemos se é racional, se dá conta de
tudo, se resolve todas as dificuldades. Foi assim que procedemos com a
doutrina da reencarnação, que não adotamos, embora vinda dos espíritos, senão
depois de havermos reconhecido que ela só, e só ela, podia resolver aquilo
que nenhuma filosofia jamais havia resolvido". (Tradução de Júlio Abreu Filho, pág. 115 -
Edicel).
A REENCARNAÇÃO NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
A ideia da reencarnação é conhecida desde a
mais remota antiguidade. Mas perdeu-se no emaranhado das superstições e do
misticismo, refletindo as dificuldades da cultura em desvencilhar-se das
pressões atávicas a respeito da relação da criatura com o Criador. A vivência
dos problemas cotidianos e a fragilidade do ser humano diante da natureza
fomentaram uma relação casual entre os humores dos deuses e os sofrimentos
baseada no medo, na condição de culpa, castigos, desobediência e punição.
Dentro desse quadro confuso, criaram-se
seitas fundamentadas em crendices e superstições acerca da reencarnação. Por
isso, a metempsicose foi aceita largamente por simbolizar o castigo mais
cruel imposto ao pecador, fazendo com que, por ser uma pessoa humana,
reencarnasse num animal. Até um filósofo como Pitágoras a aceitou e difundiu.
A reencarnação é muito aceita na cultura
asiática, mas não teve uma ação social redentora, revolucionária. Ao
contrário, propiciou uma atitude contemplativa, conformista e acomodatícia.
Em culturas como a indiana, a reencarnação não evitou, ao contrário, deu
certa consistência à separação em castas sociais, mantendo um estado de
flagelo para os mais pobres e desafortunados.
A cultura ocidental sofreu sucessivas
transformações até cristalizar-se, de uma maneira geral, sob a égide da
Igreja, com a visão judaico-cristã. A predominância da religião, como centro
de conhecimento e comportamento, criou uma forma não-racional de ver e
compreender o ser e o mundo.
Embora espiritualista, a Igreja não aceitou
a reencarnação e fixou-se na unicidade da existência. Com isso, estabeleceu o
princípio da finitude e concretude para o ser humano. Ele é produto biológico
ao qual se adiciona uma alma. Vive um certo tempo e morre. E aí finda seu
período produtivo. A imortalidade da alma é reflexo da existência terrena e
não apresenta qualquer oportunidade de reciclagem, uma vez que após o período
da encarnação, ela está definitivamente catalogada como boa ou má.
Logo, a pessoa humana é um ser com
trajetória fixada entre o berço e o túmulo. Na cultura, isso significa que
ele é concreto, definido e mortal.
Toda a estrutura doutrinária da Igreja se
funda no pecado original. A moralidade e a culpa se inserem na cultura como
instrumentos, como uma fase preparatória para a vida eterna.
Certamente, a ideia de punição pela
desobediência e até pelos humores dos deuses ou de Deus, não é exclusiva do
judaico-cristianismo. Mas a adoção do Deus Jeová dos judeus manteve a relação
criatura-Criador dentro dos limites do medo, terror e insegurança.
A REENCARNAÇÃO NO ESPIRITISMO
A reencarnação, todavia, não é um princípio
solitário e autônomo no pensamento kardecista. Faz parte de um corolário de
leis que se encadeiam e dão um novo sentido, uma nova visão de vida e da
pessoa.
O projeto espírita é abrangente e inovador.
Ele aproveita velhos conceitos sobre a natureza do ser humano, o progresso,
sobre Deus e os redefine, atualiza, dando-lhes novas dimensões, refugando
superstições e crendices.
A doutrina kardecista procura escoimar seus
princípios das concepções místicas procurando dar-lhes uma base científica,
caminho que Kardec definiu para dar validade à proposta doutrinária.
A doutrina kardecista reformula o
entendimento sobre a Justiça Divina, que tem sido vista como uma forma
policial, punitiva, exigindo pagamento. Para isso, apresenta uma nova
compreensão da lei de causa e efeito, geralmente tomada no seu aspecto
negativo, de expiação. Para a doutrina kardecista, a Justiça Divina, ao
contrário, só tem por objetivos dar oportunidade de crescimento e ampliação
das qualidades do ser espiritual.
A reencarnação, como foi dito, é um elo no
processo evolutivo da Lei de Evolução, uma concepção revolucionária do
Espiritismo, que ajuda a entender o ser humano e o mundo.
Detalharemos a seguir alguns conceitos básicos do Espiritismo e as dificuldades da cultura cristã em aceita-los.
O ESPÍRITO E A EVOLUÇÃO
A existência, evolução e imortalidade do
espírito, conforme postula o Espiritismo, é diferente de qualquer análise ou
proposta anterior ou presente a respeito da natureza espiritual do ser
humano.
Se na visão univivencial, a essência
espiritual, a alma, tem vida produtiva limitada e sua criação coincide como o
nascimento do corpo, para o Espiritismo o ser espiritual é criado por Deus
sem qualquer ligação específica com determinado corpo ou determinada
situação. Pela doutrina kardecista, a criação de espíritos é um processo
divino, inacessível ao nosso conhecimento, conduzindo a essência espiritual
pelo caminho do autocrescimento, explorando suas potencialidades inatas.
È básico na Doutrina afirmar-se que o ser
espiritual é criado simples e ignorante, como um princípio espiritual. É geralmente
aceito que esse princípio espiritual, inicialmente sem estrutura, caminha em
lento progresso e que vai se consolidando e agregando fatores instintivos no
reino animal até despertar a razão, isto é, aprender o conhecimento,
discernir fatores e determinar o próprio futuro, atingindo o nível hominal.
Quando se atinge o nível hominal, o
principio espiritual torna-se espírito, definido como o ser inteligente do
universo. Após o despertar da razão, começa a desenvolver a afetividade, o
que corresponde, em termos genéricos, à moralidade, a civilização e a
cultura.
Esse princípio espiritual, germe do espírito, desenvolve suas aptidões inatas, potências, no conflito da formação e vivência em organismos, até eclodir na espécie humana. Posto isso, verifica-se que o ser humano atual é um produto da evolução singular dos espíritos.
A SINGULARIDADE E O TEMPO
O conceito de singularidade valoriza a
individualidade, a construção e o desenvolvimento da sabedoria do ser
enquanto ser, dentro de uma visão solidária. Este conceito pode ser explicado
na assertiva: "toda
decisão é solitária, mas sua realização é solidária", que é
a base do processo evolutivo.
O crescimento do ser espiritual é atemporal.
A noção do tempo é colocada na dinâmica do processo, sem parâmetros
cronológicos ou comparativos.
Cada indivíduo, na sua singularidade,
descreve a curva de seu tempo, tomado-a compatível com sua disponibilidade de
crescimento, reflexão, estratificação e dinamismo, dando sentido à
diversidade de caracteres e opções vivenciais visíveis na existência humana.
Nesse entendimento, existe um eixo
coordenador do processo de progresso das individualidades, que é a Lei
natural ou divina, proposta por Allan Kardec.
Esse eixo estabelece a reciprocidade do ato
e da reação como forma de conflito positivo ou negativo, gerando reações
adequadas e aprendizado gradativo, pela infinita repetição de processos, nos
quais a encarnação, a vida, a morte e a reencarnação são instrumentos básicos
para desencadear o crescimento.
O ESPÍRITO E A IMORTALIDADE
A imortalidade é uma característica natural
do principio espiritual e, por conseqüência, do espírito. É de sua natureza
ser imortal. Essa afirmação estrutural é que dá suporte à Lei de Evolução.
Sendo imortal e potencial, o ser espiritual
necessita de instrumentos de apreensão dos fatores externos, de modo a criar
condições de permanência de si mesmo. A noção de uma alma imortal, criada
junto com o corpo e mantendo a chama da vida após a morte, sem possibilidade
de reciclagem e crescimento, é comparada à morte total, nada tem a ver com a
imortalidade dinâmica que o Espiritismo ensina.
A encarnação e a reencarnação do espírito
fazem parte dos mecanismos da evolução.
Ela é necessária para levar o ser espiritual à perfeição (LE, questão 132). A reencarnação é um corolário desse processo: "...as encarnações sucessivas são sempre muito numerosas, porque o progresso é infinito." (idem, questão 169).
O ser espiritual, para seu desenvolvimento
integral na relação com os organismos, na encarnação e reencarnação,
submete-se a uma ação existencial repetitiva: nascer, viver, morrer,
renascer. Neste círculo completo se insere o "estado errante", o tempo
vivido entre duas encarnações, no plano extrafísico.
Eis aí delineado, em linhas simples, o
projeto da evolução dos espíritos.
RESISTÊNCIAS ÀS NOVAS IDEIAS
A cultura é fruto da atuação do ser singular
e que, simultaneamente, o influencia e de certa forma o submete, numa relação
dialética e contínua.
Embora dinâmica, existem alguns fundamentos
da cultura que foram cristalizados por séculos de sucessivas afirmações. Além
disso, com relação a muitas coisas, a visualidade determina o conceito, mesmo
que errado.
Essa é a primeira dificuldade a ser
superada.
Por analogia, lembremos que a cultura
ancestral dizia que a Terra era parada e que o Sol se movia. Durante séculos
essa era a verdade, porque correspondia à realidade visual, existencial.
Depois, pela ciência e também pela constatação visual, verificou-se que a
Terra é apenas um pequeno planeta azul, participante do sistema solar, dentro
de uma galáxia dentre muitas galáxias, num universo sem limites.
Hoje a cultura sabe que a Terra gira em tomo
de si mesma, num período de 24 horas e alguns minutos e que se realiza um
movimento de translação em torno do Sol, correspondendo ao ano de 365 dias.
Entretanto, para a vida comum, no dia-a-dia,
a Terra parece e é vivida como parada. Só intelectualmente se percebe o seu
movimento.
Da mesma forma, na vivência comum, a pessoa
nasce, vive e morre. Ao nascer, é uma criança que passa invariavelmente pelas
etapas do desenvolvimento físico e psicológico comuns à espécie e que nada
parece ressaltar, a não ser em ocasiões especiais, que não seja realmente um
ser totalmente novo. Não tem lembranças vivas de um passado. Submete-se ao
processo de amadurecimento corporal e psicológico como alguém que nunca
tivesse vivido essa experiência anteriormente.
Somente intelectualmente é que se pode
entender o ser humano como um espírito reencarnado. Daí as dificuldades de se
entender como um espírito adulto pode encarnar numa criança.
No evangelho, temos o diálogo de Nicodemos
com Jesus. Quando este diz que é preciso nascer de novo, o fariseu argumenta:
"como pode o espírito
de um homem velho entrar no corpo de uma criança?" E a mesma
pergunta continua perturbando as pessoas porque é difícil entender a
engrenagem da reencarnação, uma vez que para a maioria o ser humano é o seu
corpo.
EFEITOS PSICOLÓGICOS DA DOUTRINA DA
REENCARNAÇÃO
A insistência em afirmar determinados
princípios, com a autoridade divina, como as igrejas geralmente se tornam,
conduz à inevitável aceitação deles como verdade, criando uma cultura
específica. A superação desses princípios, pois, é difícil. A incorporação de
novos conceitos, que se oponham a eles, é tarefa educativa de persuasão e
consistência que demanda tempo, às vezes muito longo, pois implica na
reestruturação mental e psicológica.
A aceitação da reencarnação como um fenômeno
natural, implica em mudanças profundas na psicologia pessoal e social.
A natureza do ser, sua estrutura mental, o
conjunto de desejos, o posicionamento moral e intelectual, passam a ter novos
fundamentos e a Psicologia terá que redirecionar seu trabalho, colocando
esses componentes na análise dos fatores que concorrem para a formação,
atração e rejeição entre as pessoas.
Instituições como a família têm novos
parâmetros, uma vez que cada componente é entendido como um ser vivido,
embora submetido aos padrões culturais e às exigências genéticas,
psicossociais.
Todo o objeto da existência terrena é
revisto. Especificamente, devido à função que cada um desempenha e se
relaciona consigo mesmo, reflete as experiências dos ciclos existenciais
sucessivos sem, contudo, perturbar o ritmo existencial aqui e agora.
Ou seja, a reencarnação não pode alienar o
presente, nem mutilar o desejo e a espontaneidade vivencial, pessoal. Bem
entendida, ela é uma retaguarda de entendimento para melhorar o desempenho da
vida atual.
EFEITOS SOCIAIS DA DOUTRINA DA REENCARNAÇÃO
Da mesma forma, a doutrina da reencarnação
produz profundas mudanças nos conceitos de sociedade e das relações
interpessoais. Preconceitos e discriminações sofrem um ataque fulminante,
porque a prevalência do mérito espiritual desestrutura toda uma rede de
pruridos e condições sociais.
Tal coisa não resolverá, em curto prazo,
esses problemas, mas dará um suporte realmente amplo, espiritual para as
mudanças nas relações humanas.
TEORIA E PRÁTICA
A aceitação da reencarnação tem que ser
feita, pois, fora dos parâmetros místico-religiosos que cerceiam a
inteligência dos fatos e procuram, de uma ou de outra forma, a salvação das
pessoas, centradas na concepção da vida terrena como uma passagem inglória,
sofrida e expiatória, preparatória para a vida eterna e submetida à vontade
arbitrária da divindade. Ao contrário dessa limitação, a lei das vidas
sucessivas é caminho de reestruturação, vivência e reciclagem contínua do
espírito em evolução.
O exemplo das civilizações que aceitam
levianamente a reencarnação, mas que mantém não apenas uma mentalidade
absurda em termos de crendice e não utilizam a lei das vidas sucessivas de
forma positiva, para modificar o panorama, deve ser sempre lembrado, quando
postulamos a separação da lei das vidas sucessivas dos parâmetros religiosos
e místicos. Nessas civilizações a crença na reencarnação é uma retórica para
justificar o caos social ou a formação de castas.
Por isso, o Espiritismo deverá ensinar a
reencarnação como uma lei natural, instrumento da Lei de Evolução e
desvinculá-la das punições, do castigo e da expiação, enquanto entendida como
uma forma de flagelação da alma para purgar pecados.
Fonte: “Novas
Ideias, Textos Reescritos” – Jaci Regis. ICKS Edições, 1ª
edição, outubro de 2007 – Santos-SP.
Jaci Regis é psicólogo, jornalista, economista e
escritor. Fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos
(ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE),
editor do jornal de cultura espírita “Abertura”
e autor dos livros
“Amor, Casamento e Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”,
“A Delicada Questão do
Sexo e do Amor”, “Novo
Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.
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