Foram-se os bons, os temos, os belos, mas eu não me conformo", foi o que, citando livremente, lembro-me que disse uma poeta americana, Sarah Teasdale, que estudei nos tempos de faculdade.
Recentemente foi reeditado um livro meu sobre o assunto, "O Lado Fatal", e comecei a receber e-mails de leitores que passaram por essa dura, incompreensível experiência: alguém que amamos, ou conhecíamos, deixou de existir.
Não ouviremos seu passo no corredor, sua voz ao telefone, não teremos longas conversas, não nos reuniremos em grupo de amigos, não contaremos façanhas ou fofocas ou queixas, não trocaremos e-mails.
O endereço eletrônico inútil ainda nos espreita no computador, o que fazer?
Deletar como se a gente deletasse uma vida?
Esta coluna é uma homenagem, não só a um velho amigo que se foi recentemente, como a todas as pessoas queridas que perdi.
Homenagens não trazem ninguém de volta, mas talvez ajudem a nós, os que ficamos, a curtir mais, e melhor, o que temos por perto, em lampejos de silêncio e contemplação (ato heróico na correria destes tempos loucos e fascinantes, mas a gente consegue).
A morte, intrusa indesejada, sobre a qual tanto se fala, se pensa, se escreve, foi personagem de alguns de meus livros e causa de algumas incuráveis dores.
Ela não pede licença: sem bater, escancara num repelão porta ou janela, entra num salto, com suas vestes cheirado o mofo e seus olhos de gato no escuro.
Às vezes pega quem mais amamos.
E aí não tem remédio, não tem descanso, não tem nada senão a dor — apesar da nossa natural dificuldade de lidar com ela, a dor é necessária nesses primeiros tempos.
É preciso chegar ao fundo desse poço escuro para poder sair dele, ou ao menos ter a cabeça a tona d'água.
Presenças bondosas, conforto de alguma palavra amiga, saber que os outros estão aí, que ajudam também nas coisas práticas, nos fazem sobrevivei.
Mas não queiram que a gente não sofra, mesmo nesta cultura nossa do barulho e da agitação, em que no segundo dia já querem que a sente passe o batom e saia às compras.
Não por maldade, mas por essa aflição que nos ataca diante do sofrimento alheio, em parte porque ele é uma ameaça à nossa vidinha bem-posta: seremos os próximos?
Mas quero homenagear um amigo querido meu, de meu marido, de minha família, que morreu há poucos dias.
O nome não importa, quem o conheceu saberá.
Sua idade não importa, a tristeza é sempre a mesma.
Qual seria a hora certa para morrer?
Minha mãe morreu aos 90 anos, há quase dez ausente deste nosso mundo, arrebatada pelo cruel Alzheimer.
Fazia anos que nem me reconhecia, mas também foi duro: de repente, eu não tinha mais a quem pudesse chamar de "mãe", e me senti extraordinariamente órfã.
Então, na pessoa desse amigo, homenageio aqui a todos os que se foram -- embora eu acredite que permaneçam, não importa como, em forma de alma, energia ou memória, o que já seria muito bom: de memórias positivas, que nos iluminem, nos emocionem ou nos façam sorrir, estamos precisados.
E homenageio aqui, também, a todos nós que ficamos com a singular tarefa de preservar, no coração e no pensamento, esses que aparentemente perdemos, e de aos poucos retomar a vida -- como os mortos gostariam que a gente fizesse.
Pois igualmente acredito, com firmeza, que é melhor deixar que os mortos morram (quem viveu isso entende).
No começo do luto "tudo é horrível", dizia uma velha amiga, que havia muitos anos tinha perdido um filho, "mas com o tempo dói menos".
E afinal a vida chama, ainda que no início nos pareça um insulto.
Pois honrando a vida também estamos honrando os nossos mortos, que, na nossa lembrança não mais crispada, na nossa melancolia nao mais indignada, na integração de seus atos e palavras em nós, no que temos de melhor, continuarão vivos.
Em última analise, apesar de todo o dilaceramento, solidão e lágrimas, a morte (que não é fim, mas transformação), estranhamente, loucamente, tem um poderio limitado: seu dedo cruel e ossudo não consegue encontrar a tecla com que delerar nossos melhores afetos.
A partir da Veja (Ed. 2256 - 15/02/12).
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