quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O lado escuro da comida





Frango.
Água.
Maisena modificada.
Soda para cozimento.
Sal.
Glicose.
Ácido cítrico.
Caldo de galinha.
Fosfato de sódio.
Antiespumante dimetilpolissiloxano.
Óleo hidrogenado de soja com antioxidante TBHQ.

Isso agregado a mais 26 ingredientes é o que conhecemos pelo nome de nugget.
A receita é produto de um sistema que faz de lasanha congelada a tomates mais ou menos do mesmo jeito que se fabricam canetas, ventiladores ou motos.

É a agropecuária industrial.
Ela começa nos combustíveis fósseis.
Petróleo carvão ou, mais comum hoje, gás natural são a matéria-prima dos fertilizantes.
E os fertilizantes são a matéria-prima de tudo que você come hoje, seja alface, seja dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial - no pão com gergelim.

Sem eles para anabolizar as plantações, não haveria comida para todo mundo.
O problema é que, com eles, podemos ficar sem o mundo.

"Na porteira da fazenda, ainda antes do uso, um saco de 100 quilos de fertilizante químico já emitiu 4 vezes esse peso em CO2 para ser fabricado.
Depois que aplicam no solo, pelo menos 1 quilo daquele nitrogênio (elemento principal do fertilizante) é liberado para o ar em forma de óxido nitroso, um gás quase 300 vezes pior para o aquecimento global do que o CO2", diz o agrônomo Segundo Urquiaga, da Embrapa.
Nessa toada, a agropecuária consegue emitir sozinha 33% dos gases-estufa do mundo, mais do que todos os carros, trens, navios e aviões juntos, que somam 14%.


VOCÊ É FEITO DE MILHO E SOJA

Os empanados de frango são um dos ícones da indústria de alimentos, baseada, como qualquer outra, em mecanização, uniformização, produtividade.
Essas exigências levam a um fato curioso: há quase 40 ingredientes diferentes em um nugget, mas 56% dele é milho.

A maisena é farinha de amido de milho - o ácido cítrico, a dextrose, a lecitina, tudo é feito com moléculas desse grão. Ou com os grãos de soja, dependendo do que estiver mais em conta no mercado de commodities agrícolas (pensando bem, até a galinha é feita de milho e soja - é isso que ela come de ração).
Metade da área plantada no Brasil é dominada pela soja, que aparece em 70% dos alimentos processados.

E um terço das plantações americanas são lavouras de milho.
Isso acontece porque soja e milho produzem mais calorias que a maioria das plantas; são resistentes ao transporte e a anos de estocagem, entre outras vantagens competitivas.
Mas qual é o problema de chegar a essa variedade de comida com apenas dois grãos? Os bois podem dar uma primeira resposta.

No mundo desenvolvido, praticamente toda a carne sai das fazendas de confinamento - galpões onde os bois passam a vida praticamente empilhados uns nos outros, só engordando.

Nesses galpões, a comida do boi não é capim, mas ração à base de milho e soja.
O inconveniente é que ele não come grãos.
Industrialmente falando, um boi é uma máquina que transforma celulose de capim (algo que o nosso organismo não digere) em proteína comestível - a carne dele.

Mas campim é bem menos calórico que milho e soja.
Para ele crescer rápido e ir logo para o corte, tem que ser ração mesmo.
Só que o metabolismo do bicho pena para processar tanta comida indigesta.

A fermentação dos grãos no sistema digestivo dele pode causar um inchaço do rúmem (o estômago do boi) que pressiona os pulmões e pode matar o animal.
Para combater isso, os criadores enchem os bois de antibiótico: 70% dos antimicrobiais usados nos EUA são misturados às rações de animais.

O problema é que isso cria superbactérias resistentes a antibióticos.
É Darwin em ação: os antibióticos nem sempre matam todas as bactérias.
Às vezes sobram algumas que, por mutação genética, nasceram imunes ao remédio.
Sem a concorrência de outras bactérias, elas se reproduzem à vontade.
Nasce uma cepa de micro-organismo mais resistente a qualquer antibiótico.
Ela pode ser letal.

Ainda mais se for parar na prateleira do supermercado.
Foi o que aconteceu com uma variedade agressiva de Escherichia coli.
Em 2001, o garoto americano Kevin Kowalcyk, de 2 anos de idade, comeu um hambúrguer contaminado por essa bactéria e morreu 12 dias depois.
O caso produziu algo inusitados: um recall de hambúrguer.

No Brasil isso não é um problema.
Só 6% do nosso abate vem de confinamentos, contra 99% nos EUA.
Aqui os bois ficam soltos.
Bom para eles, pior para as bactérias.
Mas pior também para as florestas.
Nossos pastos são formados às custas de desmatamento da Amazonia e do cerrado.
E isso leva o Brasil ao posto de 5º maior emissor de CO2 do mundo.
Quase 52% dos nossos gases estufa vem do desmatamento.

Para frear isso de forma realista (porque parar de criar bois e de exportar carne não tem nada de realista), a solução é o confinamento.
Só que essa modalidade de criação também não é a panacéia para o ambiente.
Os galpões de gado causam tantos impactos quanto uma cidade grande: lixo, esgoto, rios poluídos...
Até mais, na verdade.
Só os animais confinados que existem hoje nos EUA produzem 130 vezes mais dejetos do que todos os americanos juntos.
Todo esse cocô vai para grandes lagos de esterco, que servem de parque aquático para bactérias: elas podem passar desses lagos para o solo de uma lavoura.
Podem e conseguem.
Só de recalls de vegetais contaminados por E. coli já foram 20 na última década nos EUA.
Em 2009, um surto de salmonela matou 8 pessoas e adoeceu 600 por lá.
Grave. Mas não deixam de ser casos isolados.
O maior problema da comida hoje é outro: o fator Roberto Carlos.


IMORAL E ENGORDA

O Rei estava certo quando disse que tudo o que ele gosta é imoral, ilegal ou engorda.
Comida gostosa, mas gostosa mesmo, viciante, só é boa porque é calórica - os aspargos que nos perdoem, mas gordura e açúcar são fundamentais.
Não para a saúde, mas para o cérebro.
Ele gosta mesmo é de porcaria.

Nosso cérebro nos recompensa com doses de dopamina cada vez que comemos algo bem calórico, energético.
É que no passado isso era questão de sobrevivência - havia pouca comida disponível, então quanto mais calórica ela fosse, melhor.
A massa cinzenta dá essa mesma recompensa dopamínica depois do sexo ou de drogas pesadas.
Por isso mesmo basta experimentar qualquer uma dessas coisas uma única vez para ter vontade de repetir.
Com comidas energéticas, recheadas de carboidratos ou gorduras, não é diferente, você sabe.
É impossível comer um só.

E a indústria dos alimentos se formou justamente em torno das comidas que mais liberam dopamina.
Isso começou no final do século 19, com o início da produção em massa de açúcar e farinha de trigo refinados.
Refinar uma planta significa estirpá-la de suas fibras, proteínas, minerais e deixar só o que interessa (pelo menos do ponto de vista do cérebro): carboidrato puro, energia hiperconcentrada.

Depois vieram conservantes mais potentes (como o antiespumante e o antioxidante lá do nugget) e o processamento artificial, com máquinas que transformam carcaças de bichos e um monte de subprodutos de milho e de soja em coisas bonitas e de sabor viciante.
Começava a era da comida industrializada.
A nossa era.

E a produção de alimentos nunca mais seria a mesma. O cérebro do consumidor guia a indústria dos alimentos.
Esse cérebro prefere comida turbinada por açúcar e gordura, certo?
Então a seleção natural age de novo, mas dessa vez no mercado: só sobrevive quem produz comida mais gostosa.
E a mais gostosa é a gorda (olha o Robertão aí de novo!).
Natural, então, que o mercado de comida processada acabasse dominado por bombas calóricas.
Nosso amigo nugget, por exemplo, recebe doses extras de gordura (óleo hidrogenado de soja) e também de açúcar (a glicose).
Mais do que alimentar, a função dele é dar prazer.

Mas é um prazer que pode custar caro.
Um "suco natural" industrializado, por exemplo, pode ter até duas colheres de açúcar para cada 200 mililitros.
Nosso corpo não é adaptado para suportar doses cavalares como essa o tempo todo.
A produção de insulina, por exemplo, pode sobrecarregar e dar pau - e sem esse hormônio, que gerencia o processamento de açúcar no organismo, você se torna diabético.
Nos EUA, 1 em cada 10 adultos tem diabetes - duas vezes mais do que em 1995. E a perspectiva é que essa proporção triplique nas próximas décadas, agora que 1,6 milhão de novos casos são diagnosticados por ano.

Para completar, 70% da população é considerada acima do peso.
E nós aqui no Brasil estamos indo por esse caminho.
Quanto mais a economia cresce, maior fica a nossa cintura.
No meio dos anos 70, quando o IBGE mediu pela primeira vez o peso da população, 24% dos brasileiros estavam acima do peso. Hoje são 50%.

O aumento de peso pode ser o resultado mais visível de uma dieta inadequada.
Mas quem está na parcela sem pneuzinhos da população também corre riscos. Principalmente por causa de outro ingrediente-chefe da comida industrializada: o sal.
"A maior parte do sal que a gente consome não está nos saleiros, mas nos alimentos processados" diz Michael Klag, diretor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade John Hopkins, nos EUA.
O sal é adicionado para ajudar a preservar o produto e, principalmente, reforçar o sabor.
E ele acaba onde você menos espera. Está nos cereais de café da manhã e até nos achocolatados - para deixar o chocolate menos enjoativo.

A Organização Mundial de Saúde recomenda o consumo de, no máximo, 6 gramas de sal por dia para evitar pressão alta - e as doenças que ela causa.
Os brasileiros comem o dobro disso.
De acordo com a Ação Mundial pelo Sal e pela Saúde, uma organização que reúne membros em 81 países para tentar diminuir o consumo global de sal, se a população mundial comesse apenas os tais 6 gramas de sal por dia, haveria 24% menos casos de ataques cardíacos pelo mundo e 18% menos derrames.

Os hábitos alimentares de hoje podem estar contribuindo também para um aumento de alergias alimentares e doenças intestinais.
Para você ter uma idéia, o número de pessoas internadas em hospitais por causa de alergias nos EUA quadruplicou entre 2000 e 2006 (de 2600 para 9500 pessoas por ano). O maior suspeito aí é a falta de fibras da comida industrializada.

Uma pesquisa liderada por Paolo Lionetti, da Universidade de Florença, analisou a flora intestinal de crianças italianas e comparou com a de garotos de Burkina Faso, na África, que tem uma dieta rica em fibras e nunca viram comida processada.
Então descobriu que as crianças africanas tinham uma flora intestinal mais variada, capaz de protege-las de uma série de doenças.
"Acredito que a dieta dos países ocidentais tem um papel importante no aumento das alergias e infecções intestinais", diz Paolo.

Os nuggets, pizzas congeladas e cia. não são o único problema.
A comida reconhecidamente saudável também tem os seus pontos fracos.
Dados dos governos americano e inglês mostram quedas nas quantidades de ferro, vitamina C, riboflavina, cálcio, zinco, selênio e outros nutrientes em dezenas de colheitas monitoradas desde os anos 50.
Hoje, você tem que comer 3 maçãs para ingerir a mesma quantidade de ferro, por exemplo, que uma maçã fornecia. São várias as razões que poderiam justificar esse fenômeno.

Parte da explicação pode vir dos critérios que usamos no melhoramento genético, selecionando variedades de milho, soja e outras plantas segundo a produtividade, não a qualidade nutricional.
Pior: nossas plantas criadas à base de fertilizantes, como rescem muito mais rápido, tem raízes menores e menos tempo para acumular nutrientes além daqueles que vem no próprio fertilizante.
Mais: poupadas de lutar contra insetos pelo uso de pesticidas, estariam produzindo menos polifenóis - substâncias que usam como mecanismo de defesa e que nos beneficiam por suas ações anti-inflamatórias e antialérgicas.


VENENO NA FEIRA

Tão fundamentais para a agricultura moderna quanto os fertilizantes são os pesticidas.
Ainda mais com as monoculturas sem fim de hoje.
Imagine o que acontece quando um inseto que tem na raiz da soja seu prato preferido topa com hectares e mais hectares onde só existe essa planta?
Ele não arreda mais o pé dali, se reproduz vertiginosamente e traça tudo o que vê pela frente: eis uma praga agrícola.
Elas não são novidade.

Mas claro que, com a demanda por alimentos que existe hoje, seja ou não comida industrializada, não dá para abrir mão deles.
No Brasil, menos ainda.
O surgimento de novas pragas, como a ferrugem de soja (um fungo nocivo), transformou o país no maior consumidor de agrotóxicos do mundo.
Superamos os EUA nesse quesito em 2008, quando o mercado de defensivos agrícolas movimentou mais de US$ 7 bilhões no país.

A façanha tem consequências.
Em junho passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou o relatório anual sobre a presença de resíduos de agrotóxicos nas frutas, verduras, legumes e grãos que o brasileiro consome.
Das 2130 amostras de 20 culturas de alimentos estudadas pela agência em 2009, 29% apresentaram alguma irregularidade.
Mas não é motivo para pânico.
"O fato de um alimento apresentar resíduos de pesticida além do limite estabelecido não indica necessariamente risco para a saúde", diz a toxicologista Eloisa Caldas, da Universidade de Brasília.
O ponto, segundo ela, é evitar uma dieta monótona.
Quanto mais variada sua alimentação, menos chance você tem de comer o mesmo pesticida.
E isso diminui o risco de intoxicação.
Mais seguro ainda é comprar alimentos orgânicos.
Eles não recebem veneno em nenhum momento, desde o plantio até a gôndola do supermercado. Nem veneno nem fertilizante químico.
Então são mais saudáveis para o ambiente.

E a quantidade de nutrientes por centímetro cúbico é maior. O problema é que a produção da lavoura orgânica é, em média, 30% menor do que a convencional, e os vegetais que saem dela acabam 30% mais caros.

Estudos mostram que, mesmo assim, daria para alimentar o mundo só com orgânicos.
Mas só se o consumo de carne diminuir.
O que uma coisa tem a ver com a outra?
É que boa parte do que plantamos é para alimentar animais de criação.
Uma peça de picanha, por exemplo, exige 75 quilos de vegetais para ser produzida.
Só que o mundo está cada vez mais carnívoro - a China, depois de ter virado a 2º maior economia do mundo, passou a comer 25% de toda a carne do planeta.
Hoje temos 20 bilhões de animais de criação, e a perspectiva da ONU é que esse número vá dobrar até 2050.

Até existe um tipo de carne que não depende nada das plantações: os peixes selvagens.
Mas eles não são alternativa. Primeiro, porque os mais nobres estão acabando. Algumas espécies de atum e de bacalhau não devem escapar da extinção.
Segundo, porque existe o perigo da contaminação por mercúrio, pelo menos para quem come certos peixes com frequência.

Funciona assim: embora o metal possa ser encontrado em todos os ambientes, é no meio aquático que mora o perigo.
Graças à ação de bactérias, sobretudo em zonas alagáveis, o mercúrio é transformado em sua forma orgânica e mais perigosa: o metilmercúrio.
Nessa versão, ele penetra nas algas.

As plantas aquáticas tem baixo teor de mercúrio, mas os peixes herbívoros (que se alimentam dessas plantas) tem um pouco mais.
E os predadores (que comem os herbívoros) acabam com um índice bem maior.
Quanto mais perto do topo da cadeira alimentar, mais contaminado tende a ser o peixe.
Não significa que todo peixe grande esteja contaminado.
Se ele vive numa região livre de mercúrio, o que é comum, não tem problema.
Mas claro: quem vê cara não vê contaminação.
Você só tem como saber o estado dos peixes que comeu se acabar intoxicado - os sintomas são vertigem, tremores, perda de memória, problemas digestivos e renais, entre outros.

Não, não precisa parar de comer esses peixes, só ter alguma moderação.
Mas o risco não deve diminuir - o mercúrio é um resíduo das termoelétricas.
E a maior parte do mundo ainda é movida a carvão...

Peixes contaminados, overdose de gordura e açúcar, fertilizantes que dependem de combustíveis fósseis e destroem ecossistemas...
Estamos no fim da linha, então? Sim.

Mas já estivemos antes. Ontem mesmo era 1960, o mundo tinha 3 bilhões de habitantes e uma certeza: estávamos à beira de um colapso.
Mais um pouco e não teria comida para todo mundo.
Mas não.
Chegamos a 6,5 bilhões de pessoas graças justamente à globalização dos fertilizantes e da comida industrializada - a produção em massa barateou os alimentos.

Esse boom alimentício ficou conhecido como Revolução Verde. Agora, precisamos de mais revoluções.
Uma, a da conscientização sobre os perigos do fast food e da comida processada, já começou.

E a ciência tem feito seu papel também, pesquisando alternativas que vão de plantas geneticamente modificadas que dispensam fertilizantes e pesticidas até carne de laboratório - um meio de entregar proteínas sem o intermédio de animais.
Seria uma espécie de segunda Revolução Industrial da comida.
Não sabemos como nem quando ela vai acontecer.
Mas há uma certeza: não podemos ser bestas de esperar pelo colapso.


Texto da reportagem de Claudia Carmello em Superinteressante, dez/2010.

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