sábado, 6 de outubro de 2012

Sobre a tradução da palavra “Umbral” nas legendas do filme “Nosso Lar”

 

 
O “Umbral” do tradutor

Ao ser lançado o DVD do filme “Nosso Lar”, certamente será utilizado como material paradidático em alguns cursos de Esperanto e uma pergunta surgirá: a palavra “Umbral” foi traduzida como “Umbralo”, mas essa palavra não está no PIV. Por que o tradutor optou por traduzi-la assim?

Antecipo-me na resposta:

Optei por adotar o neologismo “Umbralo”, embora não tenha encontrado na literatura espírita em Esperanto, essa tradução para o nome da região espiritual chamada Umbral.

Em sua tradução do livro “Nosso Lar” do início dos anos 1950, Luiz da Costa Porto Carreiro Neto optou por traduzir a palavra “Umbral” como “Ombrejo”.

Não considerando essa como a tradução mais adequada, nem do ponto de vista linguístico, nem do ponto de vista espírita, optei por “Umbralo” e passo a explicar os porquês.

Questão sob o prisma linguístico...

Por ser palavra de pouco uso coloquial, no Brasil, nos dias de hoje, entendamos primeiramente o significado do substantivo comum “umbral”.

Dicionário Aurélio
1. Cada uma das peças verticais das portas e janelas que sustentam as vergas; ombreira.
2. Limiar, entrada. [Pl.: –brais.]

Dicionário Houaiss
n substantivo masculino
1 Rubrica: carpintaria, cantaria, construção.
m.q. ombreira
2 Derivação: por extensão de sentido.
local de entrada para um interior; limiar
Ex.: o porto é o umbral da cidade.

Portanto, “umbral” em seu sentido mais comum significa “limiar”, no caso, de uma entrada.
Para que se visualize, imagine uma porta.
Bem abaixo dela, no chão, temos a soleira.
A parte da soleira que se estende para dentro da casa, é o umbral. 
A palavra “umbral” vem do espanhol, língua onde tem significado idêntico.
O Espanhol, por sua vez, tirou a palavra “umbral” da palavra “umbra”, que em Latim significa sombra. Justamente porque quando se entra, passamos pelo umbral da porta para nos proteger do sol na sombra.

Por extensão, umbral significa a entrada ou o princípio de qualquer coisa. Por ex.: O umbral de uma nova era.
Em Francês, umbral é “seuil”, em Inglês é “threshold”, em Alemão “Schwelle”.
Nos dicionários de Português – Esperanto, a palavra “umbral” é traduzida como “sojlo”.
Todas com significado de ponto inicial da entrada, de soleira ou ponto de passagem de um lugar para outro.

Essa “sombra”, que vindo do Latim passou para o Espanhol e dele para o Português, tem uma conotação de abrigo, de proteção.
Não de algo negativo.

Em Esperanto:
 
A palavra “ombrejo” em Esperanto significa um lugar com sombras, mas que pode ser muito agradável.
Por exemplo, se vou a um parque arborizado em dia de sol escaldante, o lugar sombreado pelas copas de muitas árvores é um “ombrejo”.

O PIV não só define "Ombrejo" como local com sombra (física) como dá o exemplo: "Loko kun ombroj: promeni en la ombrejoj de la parko".

Já a palavra “Sojlo” define precisamente a “soleira” de uma porta ou o “limiar” de alguma coisa.
Em um dicionário Espanhol – Esperanto, a tradução para a palavra “umbral” é exatamente “sojlo”.
Aliás, o Português menos contemporâneo utilizava essa palavra constantemente com esse significado. Ex.: “Quando veio a hora de desembarcar, fê-lo com a mesma alegria com que o réu transpõe os umbrais do cárcere.” (A Parasita Azul – de Machado de Assis).

Embora de menor uso, a palavra “umbral” não é arcaica, ou seja, continua válida nos dias atuais.

Ambas, “Ombrejo” e “Sojlo”, poderiam traduzir a ideia espírita de “Umbral”, mas nenhuma traduziria completa e precisamente essa ideia.

Questão sob o prisma espírita...

O Espiritismo passou aplicar a palavra “Umbral” como substantivo próprio. Como nome de uma região específica.
A literatura espírita, especialmente nas obras de André Luiz, define o Umbral como sendo um lugar vasto, com regiões de maior e de menor grau de obscurantismo.
Algumas lembram um pouco a ideia católica de purgatório ou até mesmo de inferno, mas outras não.
No livro “Nosso Lar” o personagem Lísias diz que “O Umbral começa na crosta terrestre.
O que reforça a compreensão de que a palavra “Umbral” foi empregada com o significado de “limiar”, de “lugar de passagem”.

Talvez a ideia de “sombras”, quer pela influência cultural da teodiceia católica, já que não corresponde totalmente à região chamada “Umbral”, quer pela similitude sonora entre as palavras “Umbral” e “Ombrejo”, tenham levado Porto Carreiro Neto a optar por traduzir “Umbral” como “Ombrejo”.
Ou, ainda mais provavelmente, pela parcimônia em criar neologismos, com o objetivo de proteger a língua.
Postura cuidadosa recomendada ainda nos dias atuais e sempre.
Especialmente lá no início dos anos 1950, quando o Esperanto ainda contava aproximadamente 60 anos de idade.

Mas, como esclareci, a palavra “ombrejo” transmite uma noção incompleta do que vem a ser o “Umbral”.

Allan Kardec criou toda uma nomenclatura própria para o Espiritismo porque entendia que uma ciência nova precisava de nomenclatura própria que a distinguisse.
Daí criou as palavras Espiritismo (existia apenas Espiritualismo), espírita, espiritista, médium, perispírito, entre muitas outras.
Algumas dessas palavras criadas por Kardec vêm sendo apropriadas por outras filosofias e sincretismos, mas Kardec entendia que para definir uma ideia nova era preciso uma palavra nova.

Nessa linha de raciocínio, já que nenhuma palavra definia exatamente a ideia de “Umbral”, entendi como sendo mais acertada a proposição do neologismo “Umbralo”.
Não sem antes verificar se “Umbralo” estaria de acordo com a gramática do Esperanto e se já não existia palavra homógrafo-homófona no léxico da língua, com outro significado.
Naturalmente.

Porque, de fato, por mais que se diga que algo é "parecido", em se tratando de concepção religiosa, ou é idêntico ou então é diferente, mesmo que mantendo alguma similaridade, pois depende da teologia de uma doutrina.

Um bom exemplo disso é a palavra de origem sânscrita "Karma", que apesar de não pertencer à nomenclatura espírita, é adotada informalmente por muitos espíritas, mas não tem, no Hinduísmo de onde provém, o mesmo significado que a ideia espírita de “Lei de Ação e Reação”.

Na mão inversa, falando de doutrina hinduísta, o leigo costuma empregar a palavra espírita “reencarnação” para ideias diferentes da concepção espírita, como por exemplo, a ideia de “Sansara” que, do Sânscrito, seria o fluxo incessante de renascimentos através dos mundos, movido pelo Karma, onde esse processo é uma espécie de purgatório não metafísico.
Mas o conceito de “Sansara” tem variadas concepções nas diversas tradições filosóficas da Índia.

O mesmo ocorre com a “Metempsicose”, possibilidade de reencarnar em animais e até insetos, que algumas religiões entendem como verdade, como a religião popularmente conhecida como Movimento Hare Krishna.
O Espiritismo, por ser evolucionista, não conjumina com a ideia da metempsicose, mas o leigo imagina que “reencarnação” é a mesma coisa para todas as doutrinas que acreditam na possibilidade da volta da alma ao mundo físico.
Existem outras diferenças entre vários conceitos rotulados genericamente como reencarnação.

Assim, por exemplo, não se poderia traduzir para o Esperanto como "purgatorio" ou “infero” ideias como:

· Limbo, do Catolicismo, que não é nem céu nem inferno nem purgatório.

· Sheol ou Gehinnom, do Judaísmo, que nem é céu nem inferno, nem purgatório nem limbo, mas sim um local de purificação espiritual ou punição para os mortos, onde a alma fica por doze meses e após esse período, irá acender ao Olam Ha-Ba, o mundo a vir, ou será destruída se for muito má.
 
· Hades, da mitologia grega, que seria um submundo nos domínios de Hades, equivalente ao deus romano Plutão. Hades é o nome desse deus e também de um lugar, dividido em regiões, como o Tártaro (lugar de eterno tormento e sofrimento), onde as almas passariam por um julgamento. Algo como um limbo-inferno, mas diferente. 

· Naraka é um inferno, mas para os indianos sempre é provisório, durando o tempo necessário para zerar o balanço de pendências negativas etc.

Nem se poderia traduzir para o Esperanto com a mesma palavra “paradizo”, ideias como:

· Paraíso Cristão tem mais de uma concepção entre as religiões cristãs.
De Jardim do Éden a um lugar com menos referências físicas terrestres, como jardins e árvores.
 

· Paraíso Muçulmano, pelo menos para fins de Jihad (que não significa "Guerra Santa”, ao contrário do que muita gente imagina, e sim a luta interior do fiel buscando conquistar a fé perfeita), é um lugar de delícias eternas com virgens disponíveis e submissas e a possibilidade de molestar quem está no inferno, por diversão.

· Valhala Nórdico, onde os bravos Vikings tinham direito às melhores maneiras de saciar sua fome, luxúria e sede de sangue.

· Paraíso Indiano é provisório, mesmo que por 1000000000000 ou muito mais anos, gozando-se de uma colônia de férias com duzentas estrelas. E quem vai para lá não é um despreparado qualquer, que fica boquiaberto com tudo isso, mas alguém renascido como um deus poderoso, ou seja, não como uma pessoa pobre que ganha uma herança, mas como um jovem executivo bem sucedido usufruindo de sua mansão em Mônaco.

· Nirvana não é um céu = paraíso, mas um estado de consciência ("nir" = sem + "vana" = grilhão) em que não se mantém o apego ocidental de permanecer vivo e, preferencialmente, se dando bem aqui ou em outro lugar. Trata-se, portanto, de outra conceituação.
· Terra Pura, numa escola do Budismo Mahayana, não é céu, porque é uma espécie de "lumsojlo", ou melhor, uma "academia em um spa" metafísico bem específico e direcionado para o Nirvana. Quem renasce lá estaria numa realidade sem problemas e stress com o objetivo de acelerar seu treinamento para o Nirvana.

· Campos Elíseos, na mitologia grega, era um lugar paradisíaco (oposto ao Tártaro) de paisagens verdes e florido, no mundo dos mortos, governado por Hades, onde as almas dos homens bons, como heróis, santos, sacerdotes, poetas e deuses, e somente eles, repousariam após a morte. Lá existia um vale onde corria o “rio do esquecimento”: um rio de leite que as almas bebem por 1000 anos, até esquecerem tudo da vida terrena e se preparam para reencarnar ou fazer a metempsicose. Esse atributo de voltar à vida física era dado apenas às almas que iam para os Campos Elíseos. Portanto, um sistema restritivo de reencarnação ou metempsicose. Em algumas versões esse lugar era cercado por um muro gigantesco para separá-lo do Tártaro.

Claro que abordei superficialmente cada caso, por isso peço perdão aos profitentes das religiões citadas se cometi alguma inexatidão.
As citações servem apenas para exemplificar que existem diferenças, às vezes sutis, às vezes não, de conceitos tratados genericamente por “Purgatório” ou “Paraíso”.

Essa explanação, ainda que sucinta, mostra diversas concepções para essas ideias e procura demonstrar que uma única palavra não serve para traduzi-las.

Considerações finais
 
Não é a primeira vez que ao traduzir para o Esperanto uma palavra técnica do Espiritismo adota-se a palavra original espírita, por assim dizer, esperantizada.

Assim aconteceu com a palavra “médium”, que em Esperanto ficou "mediumo".
Não se buscou no Latim a sua tradução de origem, que é “intermediário”, para traduzi-la como "peranto", por exemplo.
Pela mesma razão: definir um conceito específico.
A palavra “médium” tem semântica própria que transcende à ideia laica de “intermediário”.

Temos, portanto, diante de nós uma questão não apenas de morfologia, mas de sintaxe e de semântica da palavra “Umbral”, pelo significado que lhe deu o Espiritismo.
Ou seja, temos aqui uma questão semiótica.
Por isso não bastava buscar no Latim a origem da palavra “umbral”, no caso “umbra”, para traduzi-la: era necessário conferir-lhe em Esperanto, a mesma semântica teologal espírita que possui na língua portuguesa.
Porque essa palavra, como nome de um local no mundo espiritual, surgiu em língua portuguesa.

Assim, concluí que seria mais acertado utilizar o neologismo "Umbralo" para “Umbral”.

Ademais, a palavra “umbral” aparece pela primeira vez no filme de forma autoexplicativa: “Acordei numa dimensão chamada Umbral, uma espécie de purgatório.”
Essa frase dará ao leigo uma ideia, ainda que vaga ou incompleta, de que “Umbral” é palavra espírita, com semântica própria, que merece alguma pesquisa para melhor entendimento.
Disse que a ideia transmitida fica vaga ou incompleta porque o filme mostra apenas uma das regiões do Umbral.
Mas, no âmbito do que pode e deve o tradutor, penso que fizemos a opção mais acertada.

Aqui está a frase e a tradução para o Esperanto, na forma que aparecerá no filme:

Acordei numa dimensão chamada Umbral, uma espécie de purgatório.
Mi vekiĝis en dimensio nomata Umbralo, iuspeca purgatorio.

Pelos motivos apresentados, espero que a palavra “Umbralo” seja adotada pelos esperantistas espíritas e venha a ser incorporada futuramente no PIV.

Por fim, expresso meus agradecimentos aos amigos que trabalharam na revisão de minha tradução: Adonis Saliba, Aneta Ubik e Luiz Carlos Rusilo.
Entre nós, houve consenso pela escolha de “Umbralo”.

Pedro Jacintho Cavalheiro
Presidente da Comissão de Educação da Liga Brasileira de Esperanto
 

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